Alexandre Quintanilha
O gabinete é despojado e fica paredes-meias com uma série de laboratórios onde fervilham alunos, experiências e descobertas. A embelezá-lo há apenas uma janela ampla de onde se vêem árvores já muito tingidas pelo Outono.
Quando avança pelo laboratório para algumas fotografias, pede cerimoniosamente para entrar aos alunos que estão ao fundo. Depois olha para nós e diz: «Os meus amigos vão dizer que sou um mentiroso porque já não faço este tipo de coisas». Mesmo que se acredite que há anos não ensaia situações com tubos multicores e químicos de cheiro intenso, não deixa de se sentir que aquele homem pertence àquele lugar.
Se o quisermos resumir em duas penadas poderemos escrever: Alexandre Quintanilha, 53 anos, moçambicano, cientista de inteligência prodigiosa. Fez-se doutor pela primeira vez em Física, na África do Sul, e logo depois em Biologia, nos Estados Unidos. Durante 20 anos foi director do Centro de Estudos Ambientais na Universidade de Berkeley. Dirige há nove o Instituto de Biologia Molecular e Celular do Porto.
Hoje é posto à venda o Viagra. Partilha deste entusiasmo planetário à volta da pílula que pode revolucionar a vida sexual humana?
Tenho pensado muito pouco sobre o Viagra. Pensei mais recentemente porque tem efeitos secundários que se desconheciam e parece que alguns podem ser perigosos. Gostava de fazer duas reflexões sobre o Viagra: qualquer produto que possa ajudar a tornar a qualidade de vida de uma pessoa melhor, desde que não tenha efeitos secundários graves, não vejo razão nenhuma para que não seja divulgado e vendido. No entanto, considerar que a vida sexual tem uma importância tão grande, principalmente quando se chega a uma certa idade, é muito relativo. Há pessoas que quando chegam aos 60 anos têm outras formas de ver a sua vida realizada que através do sexo.
Pensa que o sexo tem aos 20 anos uma importância capital que pode não ter aos 60?
O sexo pode ter uma importância capital aos 20 que pode perder aos 50, aos 60, aos 70.
Perder naturalmente e não por força das circunstâncias?
Exactamente. Tive sempre discussões muito francas com os meus pais. O meu pai viveu até aos 97 anos e a minha mãe até aos 83. Lembro-me de um episódio que considerei lindíssimo, que é uma coisa muito íntima da minha mãe e do meu pai: estavam de visita a Berkeley, onde eu vivia na altura, e um dia a minha mãe veio dizer-me com um sorriso maravilhoso que na noite anterior, o meu pai com 90 anos e ela com 78, tinham feito amor. Se calhar aquilo acontecia uma vez de seis em seis meses ou uma vez por ano. Não sei se o Viagra tornaria as coisas diferentes. Para pessoas de uma determinada idade o sexo não deixa de ter importância, como percebi imediatamente, mas não é a coisa mais importante. Para eles deve ter sido uma coisa fabulosa sentirem que depois de cinquenta e tal anos ainda tinham prazer sexual.
A reflexão sobre o Viagra pode conduzir-nos à evidência de vivermos numa sociedade em que as pessoas tentam alcançar a felicidade no exterior, através de químicos, por exemplo.
Através do consumo.
Há uma espécie de obrigatoriedade em ter prazer através de um consumo. Acha que é à luz disto que se pode analisar o entusiasmo pelo Viagra?
Penso que em grande parte é isso. Suspeito que quando apareceram as primeiras pílulas anticoncepcionais deve ter havido o mesmo entusiasmo. Muita gente deve ter pensado a maravilha que era poder ter sexo sem estar preocupado com as consequências! Quando penso, hoje em dia, que os jovens têm de ter tanto cuidado por causa das doenças propagadas sexualmente e que eu nunca pensei nisso... Fui um cientista experimental nessa área. Nunca tomei drogas, nunca me interessei muito por drogas.
Nunca fumou um charro?
Nunca. Obviamente há uma curiosidade, sobretudo quando se fala de drogas altamente modificantes da consciência, o LSD e essas coisas todas. A grande maioria dos meus amigos experimentou tudo e mais alguma coisa e eu tive a sorte de ver de perto o que uma bad trip produz numa pessoa; vi um amigo ficar completamente transtornado depois de tomar LSD, apanhei um susto enorme. Se não fosse esse susto talvez tivesse experimentado.
A hiper lucidez que a cocaína provoca nalgumas pessoas nunca o tentou?
Nunca me fascinou. Já senti várias vezes na minha vida sensações de high sem perceber muito bem como e sem qualquer droga. Lembro-me de um episódio como se fosse ontem. Eu tinha chegado aos Estados Unidos há muito pouco tempo, atravessava a ponte que faz a ligação da parte oriental da baía de S. Francisco à parte ocidental da cidade. Como me levanto sempre muito cedo, cinco e meia, seis horas estou levantado, meti-me no meu carro velhinho num domingo de manhã e fui de Berkeley para S. Francisco. A meio da ponte, de repente, o nevoeiro desaparece e a cidade aparece iluminada com o sol nascente que vinha de trás e aparece completamente dourada. A sensação que tive e que não sei explicar foi tão forte que comecei a chorar; e depois de isto acontecer, foram um ou dois minutos em que fiquei transtornadíssimo, fiquei com certo receio destes momentos.
Não gosta de se descontrolar ou de deixar de ter controlo sobre as coisas?
Até esse ponto mete medo. Tenho cinco ou seis episódios deste género que foram provocados pelas coisas mais insignificantes. Esses momentos foram tão importantes que não quero que passem a ser rotina. A ideia de usar uma substância que os possa provocar não me interessa nada. Na parte sexual, hoje em dia, os jovens não têm nem um quinto da liberdade que nós tínhamos.
Não têm?
Se forem responsáveis têm muito medo. A sida é o grande flagelo e há muitos jovens que não viveram a crise dos anos 80 nas grandes cidades, S.Francisco, Nova Iorque, etc, e que acham que nada lhes toca porque não são nem toxicodependentes nem gays. Tenho para mim que as liberdades sexuais dos anos 80 e 70 e 60 foram importantíssimas para nos conhecermos.
Sabendo que fez de enfiada dois cursos poderosos como Física e Biologia que lhe devem ter ocupado o tempo todo...
Ah não, em S. Francisco estava todas as noites nas discotecas.
A sério?
Na altura só precisava de cinco, seis horas para dormir. Estava no laboratório às sete da manhã, trabalhava o dia todo até às dez da noite e depois ia para as discotecas até as duas da manhã, que era quando fechavam.
Ia fazer o quê, beber copos?
Dançar, adorava dançar. Ainda gosto, mas agora não vou.
Isso contraria completamente a imagem do cientista.
O que vocês têm é uma imagem reducionista do cientista, eu nem sei bem como definir um cientista. Se é uma pessoa que fica fascinada com a ciência, isso é verdade, estou fascinado e cada vez mais. A ciência abre horizontes e perguntas extraordinárias, agora com as clonagens em humanos... Há consequências destes novos desenvolvimentos que a gente nem sonha.
Voltando ao princípio da nossa conversa, não receia um avanço científico e tecnológico desmesurados e um domínio progressivo de qualquer coisa que é exterior sobre a sua própria vida?
Se me pergunta se há um risco, eu penso que há.
A própria clonagem tem uma perigosa duplicidade.
Não acho nada perigosa, a clonagem humana não me assusta nada.
Mas vê-a com entusiasmo?
Não sei se com entusiasmo, acho que não tem grande utilidade nesta altura. Deixe-me dar-lhe este exemplo de clonagem humana que já se está a fazer e que não percebo como se pode estar contra. Imagine que uma mulher jovem desenvolve a partir de determinada altura um cancro da medula óssea (fundamental para lhe dar os glóbulos brancos e todos os mecanismos de defesa). Essa mulher está condenada a morrer porque não conseguem arranjar ninguém suficientemente compatível. Ou arranjam alguém e vai ter de passar o resto da vida a tomar substâncias anti-imunes ou então faz a seguinte experiência: retiram do seu ovário uma célula não fertilizada, da gengiva retiram uma célula que é consequência de uma célula fertilizada. No óvulo tem só metade do número de cromossomas e da célula tira o núcleo e deita fora; pega na célula da gengiva, deita-a fora mas fica com o núcleo. Pega no núcleo, mete-o no óvulo, e agora dá-lhe um estímulo químico e esta célula começa a desenvolver-se. Com um novo sinal químico impede que esta célula se diferencie em células de embrião. Quando tiver meio quilo destas células dá-lhe um novo sinal químico e elas transformam-se todas em medula óssea. Essa mulher terá as suas próprias células clonadas para substituir na sua medula óssea.
Trata-se de uma parte, não de um todo.
Mas se não fossem todos aqueles sinais químicos a célula desenvolvia-se num ser humano.
Se pensarmos na alma como uma entidade transportável numa caixa seria uma forma de a introduzirmos sucessivamente em corpos diferentes. Para quem tem pretensões imortais é perfeito.
Neste caso é para a cura de uma doença. Essa questão da alma, para quem acredita que a alma é um problema... Eu como não acredito na alma, não tenho problema nenhum com isso.
Se nos quisermos abstrair da genética, o que marca a diferença é a personalidade, a alma, o que lhe quisermos chamar.
Felizmente. Mas você acha que se clonar uma pessoa igual a si e que começa a crescer no ano de 1998 ela vai ter uma personalidade igual à sua? Nem pense, porque o meio é completamente diferente, a comida que come agora é diferente, toda a cultura é diferente. Mesmo que se clone a si própria nada justifica pensar que essa pessoa vai ser igual a si. A ideia de que uma identidade genética cria uma identidade de personalidade é um disparate total.
Neste instituto também faz clonagem de vegetais? Brócolos, por exemplo.
Brócolos, pinheiros, flores...
Uma flor clonada produz o mesmo cheiro, um brócolo clonado produz o mesmo sabor?
Quase o mesmo. Depende sempre do solo em que cultiva; se pegar numa planta de brócolo e a fizer crescer no Alentejo, onde o solo é diferente do do Minho, provavelmente o sabor será diferente. Acontece o mesmo com o leite, o vinho.
O seu olhar é sempre no sentido de desmembrar, sejam células, pessoas, vinho ou leite?
Antes pelo contrário. Acho que sempre fui atraído pelas coisas que me eram menos intuitivas. Fiz Física, quando o que gostava era Biologia, porque era um desafio. E porque quando acabei o liceu em 62 a Física era a grande ciência do século XX.
Também porque lhe era mais difícil?
No liceu tive notas muito baixas a Física.
O que eram para si notas muito baixas?
Até chegar ao sexto ano passava com 10, melhor, com 9,5. Tive um professor extraordinário a Biologia, o Dr. Lacerda, que me mudou completamente. No segundo trimestre do quinto ano apanhei 14 a Biologia e nas outras disciplinas continuava com 10. No último trimestre apanhei 19 e o meu pai apanhou um susto, achou que talvez estivesse ali um 1 a mais [riso]. No sexto ano o Lacerda continuou e eu comecei a estudar. Até ao sétimo ano a Física era uma disciplina de que não gostava muito mas que me fascinava.
Até ao sétimo ano não tinha sequer uma ideia do que queria fazer profissionalmente?
Nenhuma, nem no fim da faculdade. Essa é outra das vantagens de ter crescido naquela altura, enquanto estive a estudar nunca me preocupei em ter um trabalho. Nunca me perguntei: Será que isto me vai garantir um trabalho?
Os seus pais eram ricos?
Nada. Mas penso que hoje há uma grande pressão sobre os jovens.
A pressão daquela altura era conseguir um trabalho para toda a vida.
A grande maioria das pessoas da minha geração fez aquilo que gostou. Hoje em dia as carreiras dos jovens são muitas vezes decididas em função das chances de trabalho.
O que quer dizer que na faculdade não sabia ainda o que queria fazer.
Ainda hoje, palavra de honra. Quando faço uma coisa dedico-me completamente a ela, mas isso é diferente. Se me perguntar, «É isso que queria fazer na vida, é o seu objectivo final»? Continuo a pensar que é fazer arquitectura.
Como é a sua casa?
No Porto vivemos num apartamento que comprei, portanto, era o que havia. A casa em Cristêlo foi em parte concebida a partir de ideias que tinha há muito tempo. Não é perfeita, mas foram alguns sonhos que saíram cá para fora. Arquitectura é uma ideia que entretenho para quando me reformar, o último desafio.
Fala já com alguma determinação.
Já tenho esta mania há muito tempo, desde os tempos de Joanesburgo quando um amigo fez um exercício fabuloso: pediu aos seus alunos de arquitectura que falassem comigo e que desenhassem uma casa para mim; e, apesar de ter dito as mesmas coisas, apareceram dez casas completamente diferentes.
Como é que foi para Joanesburgo? É moçambicano.
Nasci em Lourenço Marques.
É filho único?
O meu pai teve duas filhas no primeiro casamento, depois separou-se e foi viver para Berlim, onde conheceu a minha mãe que é alemã.
O seu pai era português ou moçambicano?
Era açoriano. Era muito amigo do Vitorino Nemésio e da Gabriela. Eu nasci em Moçambique, acabei lá o 7º ano e tinha 3 alternativas: ou ficava lá, ou vinha para Portugal ou ía para um outro país. Fui para a Universidade de Joanesburgo porque tinha boa reputação, ficava próximo de Lourenço Marques (os meus pais já tinham uma certa idade) e era uma boa solução económica.
Vivia num colégio?
Vivi em casa de famílias inglesas.
Fala outras línguas desde sempre?
Sim. Vivi muitos anos com uma família de muitas crianças, não pagava nada desde que tomasse alguma responsabilidade em relação aos miúdos.
Uma espécie de au pair?
Exactamente. Dava-lhes banho, lia-lhes histórias. Foi uma experiência muito rica. A ideia de jantar com uma família, com um pai, uma mãe, cinco filhos e eu era muito mais apetecível que viver num apartamento sozinho.
Era a nostalgia de uma grande família?
Talvez, nostalgia de uma grande família que nunca tive. Era assim o irmão mais velho daquele grupo todo.
Nunca sentiu dificuldade em estar com inteligências medianas?
Eu sou uma inteligência mediana.
Quando se olha para o seu currículo é muito fácil pensar que foi uma criança sobredotada.
Em toda a minha vida só conheci uma pessoa verdadeiramente genial. Já conheci gente com uma enorme energia, muito trabalhadora e apaixonada pelo que está a fazer, é uma coisa diferente. Foi um homem que conheci em Cambrigde, Brian Josephson, aos trinta anos recebeu o Prémio Nobel. Passei com ele umas férias na Suiça. Fazia associações de ideias assim...
Entusiasmavam-no por serem sólidas, rápidas?
Rápidas, sólidas, fascinantes. Lembro-me de um episódio com o director do laboratório (Pete Hart) que andava há meses a tentar resolver um problema; o Brian Josephson estava presente, foi buscar mais água para o chá e, quando se sentou, desfez um maço de cigarros para ter papel branco para escrever, entregou ao Hart e disse-lhe «Esta é a solução». E era. Se calhar porque não estava sempre a pensar na mesma direcção conseguiu arranjar uma solução. Eu acho que não sou estúpido, é obvio que não sou, mas não acho que seja mais inteligente que alguns dos meus alunos.
É mais aplicado e metódico?
Talvez. E talvez tenha já aprendido a focar o meu interesse num assunto e a separar daí as coisas que não interessam. Mas acho até que as pessoas muito inteligentes nunca são muito bons professores porque não conseguem perceber as necessidades dos outros. O maior presente que se recebe quando se é professor é conseguir que a outra pessoa, no espaço de poucos anos, consiga saber tudo o que a gente sabe e mais.
Tem, pelo menos, dificuldade em lidar com a estupidez?
Ai isso tenho. Tenho dificuldade em lidar com a arrogância que muitas vezes está associada à estupidez. Quando as pessoas têm a certeza absoluta.
Mas a vaidade é um pecado capital.
É, é. A arrogância também tem muito a ver com valores considerados absolutos e à volta dos quais não se admite discussão. A questão do aborto é um exemplo.
A ideia de Deus...
É outra ideia absoluta. Como não aceito a existência de um ser supremo nem sequer me interessa.
Não teve formação religiosa em casa?
Não. Por decisão dos meus pais não fui baptizado e, para grande escândalo de muita gente em Moçambique, fui o único aluno dispensado das aulas de religião na escola.
Nunca teve vontade de ir só para estar ao lado dos seus colegas?
Tive, mas por uma razão diferente: no sétimo ano havia um professor, um padre jesuíta muito inteligente que falava de filosofia, e eu gostava de ir a essas aulas. Tenho muita dificuldade em conceber que haja uma moral transcendente. Penso que a moral tem que ter uma componente muito prática, evolutiva.
Gostava de ser bafejado pela fé?
Não, não tenho sequer esse conceito. Gosto muito de pessoas e os valores mais importantes são os da relação humana, da honestidade, da dedicação, valores que passam pela qualidade da minha vida e da vida das outras pessoas. De uma maneira geral, as relações não funcionam porque os ideais são muito bonitos mas a vida real é altamente egoísta. Eu acho que um dos problemas da vida moderna é as pessoas não saberem separar intimidade da sexualidade e confundir essas duas coisas é um drama. Porque a sexualidade pode ser íntima ou não ao passo que a intimidade é uma coisa tão rara e tão profunda que às vezes não se sabe se não toca nas bordas da sexualidade.
Tendo essa consciência do que são as relações humanas quase se pode adivinhar que tem uma relação feliz.
Tenho. Tenho há muitos anos amigos com quem tentei atingir este tipo de intimidade em que o fundamental é ficar genuinamente feliz com aquilo que a outra pessoa consegue e que lhe dá felicidade ou prazer. Quando sinto que a pessoa de quem eu gosto conseguiu alguma coisa e eu não fico invejoso disso, a isso é que eu chamo uma boa relação. Como com os alunos: connosco eles aprenderam a ser melhor do que nós. Não é ser mais do que nós; é ser mais do que si próprio.
Não é uma coisa mágica, no meio de biliões de pessoas encontrar «A Pessoa»?
Penso que também é porque a gente não se esforça, porque é preciso abdicar de algumas coisas, abdicar da realização imediata. Eu também ia para as discotecas, adorava dançar, encontrar alguém de quem gostasse, ir para casa e no dia seguinte não saber mais daquela pessoa – não estou a diminuir a importância disso porque é uma fase em que estamos a tentar perceber do que gostamos. Quando cheguei à América, onde não tinha nada nem ninguém, passei o primeiro Natal sozinho. No café um transexual tentou conversar comigo. De início senti-me inconfortável e tive uma reacção repulsiva; só ao cabo de meia hora percebi que era uma pessoa sozinha que só queria conversar sem nenhuma outra intenção. Estive para aí cinco horas a falar. É um episódio que nunca esqueço porque foi uma lição: não veio pedir nada, veio partilhar. Em Portugal aceitamos as pessoas diferentes de nós mas não aceitamos as pessoas muito diferentes de nós. Um homem clarissimamente vestido de mulher, se não for num palco, temos muita relutância em passear com ele na rua.
Não estou a ver o Professor Alexandre Quintanilha a passear na Boavista com um transexual.
Se calhar você tem razão, se isto me acontecesse cá sentir-me-ia muito pouco à vontade e tenho uma enorme vergonha disso.
Há uma chamada biologia ou química dos afectos? Ainda há pouco tempo se lia num jornal um artigo que falava da aproximação das pessoas pelo cheiro.
O que tento perceber há muitos anos é o que situações de stress fisiológico causam à pessoas e como as pessoas se adaptam a essas situações. A gravidez, o exercício físico muito intenso, o risco de doenças cardiovasculares, por exemplo, são situações de stress fisiológico. Já me desafiaram para estudar o stress psicológico mas acho que não vou entrar nessa área porque é muito complexa. Sou um cientista clássico, gosto de poder separar as variáveis e de conseguir quantificar o que estou a fazer.
Na psicologia nem tudo é mensurável.
A psicologia é uma ciência e uma arte. O meu problema é que não consigo separar as variáveis e depois medi-las. Se me pergunta porque é que há situações em que a pessoa gosta de estar e outras em que não gosta, eu não faço ideia como lhe responder.
Então fiquemos na sua área. Esta teoria dos cheiros, no que isso tem de divisível e compreensível, acha que faz sentido?
Acho que faz muito sentido. Esse aspecto é, às vezes, mais forte entre raças diferentes. E quantas vezes conhece pessoas que fisicamente não acha nada atractivas e passadas quatro horas está completamente fascinada?
Além do cheiro há outros elementos poderosos nesta química dos afectos?
Penso que há formas de conhecimento e de chegar a outras pessoas que não sei se alguém sabe como funcionam. Quando entrevisto pessoas para lugares ou para serem alunos de doutoramento quase nunca olho para o currículo; o meu tempo é de inter-acção, de perceber como é que a pessoa reage, olha, vê, responde. Escolho, correctamente ou erradamente, quase exclusivamente à base da intuição.
Não deixa de ser bizarro num homem da sua inteligência.
É grave que faça isso?
É, no mínimo, curioso.
Mas é muito claro para mim. Pode, por vezes, prejudicar as pessoas porque it’s not fair.
Qual é a sua primeira língua, o português, o inglês ou o alemão?
Nesta altura, o inglês e o português. Dos 17, quando saí do liceu, até aos 45, quando vim para cá, só falei inglês. O alemão aprendi-o muito tarde porque a minha mãe não mo ensinou. Trinta anos a falar só inglês deixa marcas profundas e há coisas que quero explicar e me saem muito melhor em inglês que em português.
Ainda se comove? Como é que ainda se maravilha?
Os meus amigos fazem imensa troça porque choro imenso e nas situações mais disparatadas, nos filmes, na publicidade. Mas adoro essa característica minha. Há pessoas que não conseguem chorar, em geral são homens que só o fazem em situações extremas, e sentem uma enorme falta disso. Chorar é como dar uma gargalhada, e eu adoro anedotas. Tenho dificuldade em fazer discursos de homenagem porque não consigo acabá-los.
Como foi o seu jantar de despedida na América?
Fizeram-me uma festa muito bonita, deram-me um livro, acho que o tenho ali; estava o laboratório inteiro, aí umas 800 pessoas, eu nunca pensei que tivesse tanta gente que gostasse de mim _ não sei, se calhar foi para comer que foram lá.
Como é que o convenceram a vir para cá?
Aconteceu uma coisa em Berkeley que me predispôs a esta saída. Cheguei em 1970 e toda a área era uma espécie de paraíso na terra, um sítio em que aparecem ideias e pessoas novas, onde há 40 raças diferentes misturadas, restaurantes maravilhoso de todos os sítios do mundo, onde há jovens espertíssimos a fazerem todas as áreas do conhecimento. Nos anos 80 chegou a sida e a cor da cidade mudou. Numa festa, num jantar, à medida que os anos íam passando, não havia uma única reunião em que um amigo não dissesse «Sabes, a Susan está infectada com o HIV; olha, o Andrew está muito mal no hospital». Na área da baía não havia ninguém que não conhecesse alguém que estava doente. Em 1989, dois colaboradores meus, de 27, 28 anos, entraram no meu gabinete, em dois dias consecutivos, e vieram dizer-me que tinham sida. Andei dois dias aparvalhado, desorientado, ao terceiro dia tive uma violenta crise de choro e senti que estava num ambiente do qual tinha que sair.
Qual era a sua principal dificuldade?
Era um bocado o receio, se calhar injustificado, de que muitas das pessoas que conhecia íam desaparecer desta forma.
Mesmo que irracionalmente não tinha também receio de ser tocado pela doença?
Isso não, tratava-se de uma morte psicológica. O meu medo era que isto me tornasse frio pela banalização da situação, que aprendesse a desligar para não sofrer tanto. Demorei seis anos a sentir-me suficientemente confortável para voltar lá. Não lhe sei dizer porque é que quando surgiu a hipótese de vir para cá foi uma espécie de alívio. Você conhece alguém com sida?
Não.
Cá, eu sei que há doentes com sida mas não conheço ninguém infectado.
Em Portugal, por outro lado, toda a gente conhece alguém que se droga.
Eu não conheço, suspeito que algumas pessoas se drogam. Acho que é diferente porque pela droga pode chegar-se à sida mas há sempre a esperança de que a pessoa consiga libertar-se antes de chegar a essa fase. O problema da droga tem uma gradação diferente: fumar marijuana não é a mesma coisa que injectar heroína. Conheço dezenas de pessoas que fumam haxixe e isso não as torna insociáveis, bem pelo contrário; as drogas muito pesadas afectam uma pequena minoria.
Presidiu recentemente à comissão que fez o diagnóstico do problema da droga em Portugal. Como é que se envolveu?
Quando o José Sócrates me convidou eu desatei a rir e disse-lhe que não sabia nada de droga; ele disse uma coisa engraçada, disse «Justamente por isso, assim vem com uma atitude científica de olhar, ver, ouvir e tirar as suas conclusões e não vem já com ideias feitas». Contactei com gente que sabe muito do assunto, o Daniel Sampaio, o Júlio Machado Vaz, o Lourenço Martins, o Joaquim Rodrigues. Gostei imenso do trabalho que fizemos em conjunto, não é perfeito mas é um primeiro passo; fazemos dezenas de recomendações mas não priorizamos as decisões.
Duas conclusões do relatório foram particularmente comentadas: uma diz respeito à liberalização e a outra à extinção do Projecto Viva. Quer comentar?
O relatório tem, na minha opinião, uma série de recomendações que são tão ou mais importantes que estas duas. Obviamente estas atraem muito mais o interesse da comunicação social.
Quer apresentar duas que considere mais significativas?
Acho que o trabalho de prevenção que deve ser feito a partir de crianças de sete, oito anos de idade é, se calhar, muito mais importante que tratar o problema no fim. A descriminalização é para tratar o produto; a prevenção é para impedir que se chegue a essa parte. Toda a prevenção, nas escolas, nas famílias, mas a sério, é do mais fundamental que aqui existe. A outra parte que me parece importante é a da investigação. Porque é que você se tomar haxixe vai um dia chegar a tomar heroína e o outro não o faz? Não fazemos ideia.
Em Portugal?
Em qualquer sítio do mundo. Não fazemos ideia das características biológicas, psicológicas e sociológicas que levam uma pessoa a fumar haxixe e a passar para a heroína e outra a nunca passar daí. Sem percebermos isso andamos um bocadinho a tactear, a fazer experiências – e eu acho que as experiências são importantíssimas. Uma das coisas que defendemos no relatório é que nós, juntamente com outros países, tentemos muitas coisas diferentes porque a uniformização na maneira como se lida com a droga é o pior que pode acontecer. Em relação à despenalização gostaria de esclarecer duas coisas: primeiro, não recomendámos a despenalização mas a descriminalização; segundo, a descriminalização do consumo privado de pequenas quantidades não vai contra a legislação internacional.
Se fosse possível olhar para o assunto apenas sob o ponto de visto médico e social, retirando-lhe toda a carga económica que a ele está associada, a toxicodependência podia ser olhada como mais uma doença à qual se ministram substâncias químicas?
Exactamente. Toda a parte financeira tem muito a ver com o crime.
70% das nossas cadeias estão ocupadas com reclusos cujo crime tem a ver com o consumo ou a venda de estupefacientes.
Isso não é verdade, no máximo temos 30% das cadeias com toxicodependentes. Outra conclusão fundamental do relatório é a necessidade de haver uma maior ligação entre os serviços da justiça e da saúde.
Por último, porque aconselham a extinção do Projecto Vida?
Ficámos com a sensação que não havia uma coordenação muito clara e que havia uma mistura entre uma parte técnica e uma parte política. O Dia D, por exemplo, foi muito um fogo de artifício para mostrar que o governo estava a fazer qualquer coisa.
Ora num relatório encomendado pelo governo...
Eles não gostaram muito dessa parte e alguns pessoas da comissão distanciaram-se dela. A noção foi que uma outra estrutura, diferente da do Projecto Vida, podia ser mais útil nesta coordenação. Isto não teve a ver com a qualidade das pessoas, houve gente extraordinária a trabalhar no Projecto Vida, mas sim com a maneira como as coisas estavam estruturadas.
Publicado originalmente no DNa do Diário de Notícias, em 1998