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Anabela Mota Ribeiro

Alexandre Quintanilha e Richard Zimler

14.02.23

A homossexualidade é um não-assunto? Uma relação amorosa que tem 34 anos é um assunto? Falar do casamento entre pessoas do mesmo sexo, num país que o permite, continua a ser importante? E num tempo em que começa a ser feio ser preconceituoso, os exemplos são importantes para quem? Estas foram algumas das questões que Alexandre Quintanilha e Richard Zimler se puseram quando ponderaram dar esta entrevista. As respostas a estas e a outras questões, e uma espantosa história de amor, estão nas próximas páginas.

Conheceram-se em São Francisco em 1978, mudaram-se para o Porto em 1990. Casaram há dois anos e um mês. Alexandre Quintanilha tem 68 anos, é cientista. Richard Zimler tem 56 anos, é escritor. Concedem uma entrevista única, a dois, em casa. Estão descalços. Estão tão confortavelmente como se pode estar em casa, mesmo que esteja uma intrusa entre eles. O propósito era falar da dinâmica da relação, dos seus percursos individuais, de como foram tocados, e alterados, com a chegada do outro, pela vida do outro. O propósito não era contar uma bela história de amor, mas era evidente que aquela era uma bela história de amor. Uma daquelas histórias por que torcem as professoras, as hospedeiras, o notário, as pessoas que formam uma espécie de conluio (a expressão é de Alexandre) e que fazem perguntas e mandam beijinhos. Porque é que é tão raro uma relação ser tão feliz ao cabo de 34 anos de vida comum? É por isso que as pessoas torcem por eles? E importa, para o caso, que seja uma relação entre pessoas do mesmo sexo?

Para eles, fazia sentido exporem a relação que vivem e correrem o risco de apanhar com rótulos, estereótipos, gavetas. Não se pergunta se são a favor da adopção de crianças por casais homossexuais (ainda que a resposta esteja implícita na entrevista) nem se pergunta porque é que eles acham que são homossexuais (perguntar-se-ia a um heterossexual porque é que ele acha que é heterossexual?). Mas pergunta-se pelo modo como lidaram com a sua homossexualidade, familiarmente e socialmente.  

Eles souberam, desde o princípio, que o outro era o tal. Não se enganaram. Sorte? Sorte e trabalho, respondem os dois.

 

 

Gostava de começar, não pelo princípio da vossa vida comum, mas por um certo princípio, que foi a vinda para Portugal. Por que é que decidiram começar uma nova vida?

Alexandre Quintanilha – Cheguei à [São Francisco] Bay Area no princípio dos anos 70, o Richard chegou em 1977. Conhecemo-nos no ano seguinte e passámos a viver em Berkeley. No fim dos anos 80 aconteceram dois episódios que alteraram a nossa forma de estar. A epidemia do HIV começou a aparecer. Houve dois ou três sítios na América que foram muito afectados. A área da baía, e em particular São Francisco, foi uma delas.

 

San Francisco tinha o rótulo de ser uma cidade onde a comunidade gay se sentia bem. Algumas das lutas pelos direitos dos homossexuais, encabeçadas pelo activista Harvey Milk, aconteceram aí.

AQ – E não só. Era um sítio onde tinha havido movimentos hippie, onde toda a gente fumava, se injectava. A partir de 85, 86, era quase impossível, tanto na universidade como fora dela, ir almoçar com amigos e o tema da conversa não ser o HIV.

Richard Zimler – Como a crise, agora, em Portugal – ninguém fala de outra coisa.

 

O seu irmão veio a falecer de SIDA. Nessa altura já se tinha declarado a doença? Era encarada como uma sentença de morte.

RZ – Sim. Antes de 83, 84, ele suspeitava que tinha qualquer coisa. Depois confirmaram que era HIV.

AQ – A área da baía era um lugar de liberdade, de exploração. Tinha havido movimentos contra a guerra do Vietname, muitos feminismos começaram lá. As lutas em Oakland, pelos direitos dos negros, tinham sido importantes. Era uma área dinâmica de muitos pontos de vista. E a partir dos anos 80 havia a sensação de que não se podia escapar deste assunto. Ainda bem que nos conhecemos em 78; não tenho a certeza, se nos tivéssemos conhecido mais tarde, se um de nós não teria tido SIDA.

 

Conheceram-se num período em que toda a experimentação era possível. Sem fantasmas. Isso marcou a vossa relação?

RZ – Eu só tinha 22 anos quando conheci o Alexandre. Mudei para São Francisco quando tinha 21 anos, e estava a começar a vida sexual, a vida espiritual, a vida profissional. Chegar à Bay Area era o começo de uma longa viagem. Ele tinha 33 anos (na altura pensávamos que era já muito avançado na idade...). Para os dois era o começo de uma aventura. E de repente chegou a SIDA. Eu trabalhava na Victoria’s Secret, uma firma de lingerie feminina; era secretário. Trabalhavam lá umas 60 pessoas e diria que uns dez ou 12 eram gay. Harvey Milk disse que quando as pessoas começassem a sair do armário, todos íamos perceber que o carteiro era gay, que a empregada de mesa no nosso restaurante favorito é lésbica, que o professor de matemática que o nosso menino adora é homossexual. São Francisco era o primeiro sítio no mundo, pelo menos nos Estados Unidos, em que isso já estava a acontecer.

 

A orientação sexual não era um assunto?

AQ – Deixou de ser assunto.

RZ – Na minha empresa, todos os homossexuais eram gente assumida, não havia qualquer problema.

 

Foi por isso que foi de Nova Iorque para São Francisco? Não é um americano do middle west, dos estados conservadores.

RZ – Mesmo em Nova Iorque, mesmo dentro de uma família de gente formada... O meu pai tinha uma licenciatura em advocacia, a minha mãe era bioquímica, mas os preconceitos contra os homossexuais eram violentos. Quando suspeitei que era homossexual entrei em pânico. Sabia que contar aos meus pais, aos meus amigos, ia provocar problemas. Os meus pais não eram racistas, a minha mãe era feminista; o último preconceito a perder era a homossexualidade.

AQ – Muito diferente da minha família.

 

Como é que foi consigo?

AQ – Os meus pais não eram nada preconceituosos. Não disse que era gay, não existia essa expressão quando tinha 16 anos. Disse aos meu pais que estava apaixonado por um homem e que não percebia. Não havia role models [exemplos] para isso. O meu pai disse-me que não era uma coisa que ele percebesse, mas que se isso me preocupava podia arranjar uma pessoa com quem eu pudesse falar. E fui falar com um psiquiatra, duas vezes.

 

Só para situar: isso passa-se em Moçambique, há 50 anos, e o seu pai é um prestigiado biólogo.

AQ – Na primeira vez em que estive com esse homem extraordinário, dei-lhe a ler um diário meu. Estava convencido de que era uma obra-prima da literatura [riso]. Na sessão seguinte, entregou-mo e disse: “Você está apaixonado. Isso é uma sensação maravilhosa. Devia estar satisfeito por estar apaixonado”. Eu não tinha a certeza se era mesmo gay ou se era bi. A minha mãe, a única coisa que me disse foi: “Quero é que sejas feliz”.

 

Onde é que radica a abertura que manifestaram?

AQ – Da minha mãe é muito claro. Era alemã e cresceu em Berlim nos anos 20 (era o sítio mais civilizado do mundo). Teve relações muito fortes tanto com homens como com mulheres. O meu pai, apesar de nunca ter tido esse tipo de sensação, não achou que fosse uma coisa preocupante. Isto libertou-me imenso. Mesmo na África do Sul [para onde fui fazer a faculdade], já não tinha necessidade de fingir que não era aquilo que era. Quando me aproximava das pessoas emocionalmente, quer fossem mulheres, quer fossem homens, era de uma forma aberta. E num sítio racista, ainda por cima.

 

Olhando retrospectivamente, acha que se apaixonava de facto por homens e por mulheres ou estava a tentar perceber se era mesmo homossexual?

AQ – Se calhar, as duas coisas. Com 20 anos sabemos muito pouco. Quando temos uma grande atracção por uma pessoa, quando a atracção e a admiração, e a paixão, se tornam muito intensas, duvido que não haja uma parte física, seja qual for a pessoa. Esta coisa de nos definirmos como hetero ou homo... não me defino dessa maneira. Defino-me como uma pessoa que gosta de literatura, que gosta de música, de ciência. Deixou de ser um label [rótulo].

O Richard acompanhou os anos finais da vida do irmão, que foram duríssimos. O irmão tinha uma relação muito má com os pais. O Richard tinha de ir a Nova Iorque quase todos os meses para falar com os médicos, com os padres (o irmão converteu-se ao catolicismo), com os amigos. Quando voltava, voltava emocionalmente exausto. Eu só tive essa sensação, menos forte mas muito poderosa, porque dois dos investigadores que tinha contratado para o Centro de Estudos Ambientais em Berkeley, na mesma semana, uma rapariga australiana e um jovem de Boston, vieram ao meu gabinete dizer-me que estavam infectados com HIV. Cheguei a casa e desatei a chorar. Como ele [o Richard] fazia quando vinha de Nova Iorque. Começámos a pensar que precisávamos de ir para um sítio onde aquele deixasse de ser o tópico de todas as conversas.

 

Aí, já não era o medo que a doença vos tocasse directamente.

AQ – Não, de maneira nenhuma.

RZ – Eu estava preocupado com isso. Não era claro quantos anos, ou meses, a infecção levava a mostrar-se. Estava muito perturbado. Ver um irmão com quem nos identificamos – porque crescemos no mesmo quarto – morrer, afectou-me muito psicologicamente. Comecei a lavar as mãos 100 vezes por dia. O meu irmão, um jovem de 34 anos, estava a morrer e não queria morrer. Os meus pais eram loucos. Durante esse período, e depois de ele falecer, comecei a pensar que ia morrer jovem, que não ia ter a possibilidade de escrever livros, de manter a minha relação com o Alexandre. E se eu infectasse o Alexandre? Ou vice-versa. Infectar uma pessoa com quem se tem uma união deve provocar uma sensação de culpa abominável.

 

O Alexandre contou um pouco da descoberta e assunção da sua homossexualidade. O Richard aflorou o assunto. Pode contar mais detalhadamente como viveu esse período?

RZ – Há homossexuais que sabem muito cedo; eu não sabia. Há certas características que as pessoas, nos anos 60, 70, associaram a homossexuais. Por exemplo, que não são grandes desportistas. Hoje em dia sabemos que isso não tem qualquer validade, que há homossexuais muito machões e outros muito efeminados. Eu pensava: “Não tenho estas características dos homossexuais. Gosto de desporto, gosto dos Beatles, gosto dos Rolling Stones. Como é que posso ser homossexual?”

AQ – Gostas de desporto e és muito bom em desporto. Isso não ligava com a ideia do homossexual efeminado.

 

Nessa altura trabalhava-se com gavetas, as pessoas encaixavam aqui ou acolá.

AQ – Exactamente. Deixar de estar nos sítios onde há essas gavetas é fundamental.

RZ – Pensava: “Não sou normal. As minhas fantasias não envolvem a Sophia Loren ou a Gina Lollobrigida. Talvez seja homossexual. Isso vai criar tantos problemas para mim...”. Ainda por cima, não encaixava na comunidade homossexual. “Não quero falar da Judy Garland!” Nessa altura li um artigo no New York Times sobre o Harvey Milk e sobre a comunidade gay de São Francisco; dizia que havia homossexuais cowboys, homossexuais desportistas... “Se há um sítio nos Estados Unidos onde posso experimentar sexualmente [quem sou], sem preconceitos, sem pressões, deve ser em São Francisco”. Fui com uma mala, mil dólares, sem emprego, sem casa.

 

O seu irmão era homossexual?

RZ – Sim.

 

O facto de haver um outro homossexual na família tornou tudo mais pesado para si?

RZ – Terrível, muito mais pesado.

AQ – Ainda por cima porque o irmão dele tinha muitas daquelas características da gaveta.

RZ – E não queria ser homossexual. Os outros miúdos faziam troça dele em criança. Vivia revoltado. Eu não. Depois da fase em que entrei em pânico, estava totalmente O.K. Quando conheci o Alexandre fiquei logo apaixonado. Quis contar aos meus pais. “Devo contar, porque isto é uma relação, espero eu, que vai durar”. Falei com a minha mãe, com quem tinha uma relação mais sólida, primeiro. Sempre brinco que devia ter dito: “Estou apaixonado, mas ele não é judeu” [riso]. Mas isso para ela não seria importante. Disse: “Estou apaixonado, mas é um homem, não é uma mulher”. Antes da resposta, continuei: “Não estou com problemas, não quero que te sintas culpada. Para mim é um enorme prazer, é a realização da minha vida”. E ela desatou a chorar.

 

Chorou de tristeza, desapontamento, incompreensão?

RZ – A explicação, mais tarde, é que o meu irmão, durante anos e anos, culpabilizava os meus pais. Pensou: “Vamos ter que passar por isto outra vez”. Também estava preocupada por mim. Ser homossexual significava que nunca ia ter uma relação duradoura, que as outras pessoas fariam troça de mim. Depois foi à cozinha, o meu pai estava lá sentado e ela sussurrou-lhe do que se tratava a nossa conversa. Ele respondeu: “Ah, é maricas, também”. Em inglês: “He is a faggot”. É uma palavra muito forte, muito feia. Ouvi um barulho, uma pancada seca. O meu pai tinha desmaiado. Nunca suspeitara que eu fosse gay.

AQ – O Richard jogava basebol.

RZ – Como é que um atleta pode ser homossexual? A minha mãe ficou um bocado histérica. Era uma cena de uma ópera cómica, ou dramática, italiana, não sei. Hoje rio-me muito.

AQ – O que é curioso é que a minha experiência tenha sido, não direi diametralmente oposta, mas muito diferente.

RZ – Mas os teus pais não eram provincianos como os meus. Os teus pais viviam no mundo real, os meus não.

 

Era provincianismo ou era a religião?

RZ – Não era a religião. A minha mãe celebrava as festas judaicas, mas era só tradição.

AQ – O Richard nem fez o Bar Mitzvah... Nenhum dos nossos pais, com a excepção da minha mãe, que era protestante, e que ia uma vez por ano à igreja, tinha nada a ver com religião. Não fui baptizado.

RZ – O meu pai era comunista, pensava que a religião era o ópio do povo, tal como o Marx disse.

AQ –  Eu ia contar uma coisa importante. O que me surpreendeu não foi ser atraído fisicamente por homens e por mulheres; foi apaixonar-me por uma pessoa, o que é diferente. Tenho alguma pena das pessoas que fazem uma separação entre o emocional e o sexual. (Agora faço essa separação, porque somos essencialmente monogâmicos, não queremos ter outras relações.) É uma pena ver duas pessoas que estão muito atraídas uma pela outra espiritualmente, e que têm medo de se tocar para além da festa.

 

Não se tocam por causa das convenções sociais?

AQ – Pois. As mulheres e os homens heterossexuais arranjam gavetas nas quais não ousam entrar. Muitos deles têm medo de ir explorar isso. Até me apaixonar pelo Richard, os homens e as mulheres por quem me apaixonei eram todos heterossexuais. Com todos eles foi possível chegar a um contacto físico e sexual. Claro que com os homens demorou mais tempo; quando uma pessoa se identifica como heterossexual tem uma grande dificuldade em tocar intimamente outra pessoa [do mesmo sexo].

 

Freud dizia que potencialmente somos todos bissexuais.

AQ – Não sei se somos.

RZ – Há pessoas que são totalmente heterossexuais – uma minoria – e há pessoas totalmente homossexuais – outra minoria. São poucas as que são 50/50. Sou 90 por cento homossexual. Já tive relações, mas não seria possível manter uma relação duradoura com uma mulher.

AQ – É muito forte em mim esta repulsa pelas camisolas. Pertencer ao Futebol Clube do Porto ou ser do Benfica, ser católico ou ser protestante. Ou ser de Joanesburgo, sul-africano, moçambicano. O que é que eu sou? Tenho uma mãe alemã, um pai açoriano, nasci em Moçambique, vivi na África do Sul muito anos, estive na Califórnia, estou em Portugal, tenho nacionalidade portuguesa e americana. Não me faz confusão nenhuma não saber identificar-me.

 

A maior parte das pessoas precisa do conforto de saber onde pertence.

AQ – Não sei se precisam. Acho que estão doutrinadas para achar que precisam. Vivemos muito em relação à opinião dos outros – como é que nos identificam, onde é que nos põem, como é que nos consideram? Estes muitos anos de vida foram uma caminhada a libertar-me disso.

 

Se perguntasse a cada um dos dois se lhes passou pela cabeça esconder...

AQ – Quando era miúdo, sim. Mas felizmente, a partir dos 20 e poucos anos, não só não escondia, como não tinha orgulho nem vergonha.

 

Há muitas pessoas que fazem uma vida toda, e quantas casam e constituem família, escondendo a sua verdadeira orientação sexual.

AQ – Não quero ser judgmental, não quero ajuizar se as outras pessoas fazem bem ou mal. Ter que passar o tempo todo a fingir que se é o que não se é deve ser doloroso, e não deve servir para nos realizarmos.

RZ – Sei que as pessoas têm um contexto de vida e que é difícil, às vezes; mas viver uma vida não-autêntica, sob uma máscara, é uma pena.

 

Há uma questão subsidiária desta, mas que leva pessoas a esconderem-se: o “senso comum” critica em alguns homossexuais o gay pride, a exibição. Por que é que acham que isso ofende tanto?

AQ – Não consigo falar pelas outras pessoas, mas conto uma lição de vida muito grande por que passei. Cheguei a São Francisco em Novembro e passei o primeiro Natal sem amigos, com a família nos antípodas da Terra. Estava muito só e sem saber se tinha feito a decisão certa, de me afastar de todo o meu passado. Fui para um café, e a certa altura aproximou-se um queer, um travesti bastante exibicionista. Um indivíduo que era homem, que estava vestido de mulher, todo cheio de pinturas. Senti-me muito incomodado, OK? Ele perguntou se podia sentar-se à mesa, e eu tive uma reacção muito fria, do género…

 

“Não quero ser visto com ele?”

AQ – Um pouco. Ele foi muito educado. Estivemos para aí quatro horas a conversar. Referi-me a mim mesmo como uma espécie de atrasado mental: “Eu que tenho a mania que sou aberto, como é que posso ter tido esta reacção? Esta pessoa, a única coisa que queria era companhia, como eu”.

RZ – Todos os dias vejo jovens a beijarem-se em frente a toda a gente; isso também é exibicionismo? Se um casal homossexual fizesse isso toda a gente ficava horrorizada, mas acontece todos os dias em Lisboa e no Porto e ninguém diz nada. Há um duplo standard. Sou gay, sou judeu, sou americano em Portugal. Há a tendência por parte de pessoas liberais, não-progressistas, de dizer: “Não gosto nada dos judeus, mas gosto de si”. Ou: “Não gosto nada de homossexuais, mas tu és fixe”. Nessas circunstâncias sou o mais judeu, o mais americano e o mais homossexual possível. Não quero ser aceitável. Quem sou eu para julgar aquele homossexual efeminado ou aquele judeu religioso, ou aquele americano que só come hambúrgueres e pizza?

 

Já tinha estado em público com os dois e nunca vos tinha visto de mão dada. Isso foi uma coisa sobre a qual falaram, que decidiram fazer ou não em função do sítio onde estão?

RZ – Andávamos de mão dada em São Francisco, mas não muito. Eu sou mais afectuoso, sou mais táctil. Sou mais como a mãe do Alexandre; éramos iguais.

AQ – Andamos muitas vezes de braço dado na rua, quando andamos a passear. As pessoas aqui no bairro todas nos vêem.

RZ – Quando chegámos era muito mais difícil para ele do que para mim.

 

O Richard era estrangeiro, o Alexandre era português.

RZ – Eu dava aulas na Escola Superior de Jornalismo, mas ele era um professor catedrático, ia começar um novo instituto, ia ter que pedir dinheiro de Lisboa [para os projectos científicos do instituto].

AQ – Uma vez, na Festa da Árvore no Jardim Botânico, o Richard foi convidado para estar no júri, para apreciar trabalhos feitos por miúdos de escolas. Quando cheguei fui ter com ele e dei-lhe um beijo na cara. Várias pessoas foram dizer a outras pessoas para me dizerem que tinha que ter cuidado. Até fiquei espantado. Há tantos homens em Portugal que se beijam. Os amigos antigos abraçam-se e dão beijos, os pais e os filhos dão beijos. Não havia ninguém no Porto, desde o reitor até ao ministro, [que não soubesse que somos um casal]. Quando veio cá o [Bill] Clinton, o Jorge Sampaio convidou-nos aos dois como casal.

 

Passaram 22 anos desde a vossa vinda. O país mudou muito. Isto faz-nos voltar ao ponto de partida da entrevista, à decisão de se mudarem para cá. O modo como seriam aceites, enquanto casal, foi uma coisa que também ponderaram?

AQ – Perguntei a duas pessoas. Uma pessoa no topo da ordem social, nosso amigo. A resposta que me deu foi: “Não”. Era uma pessoa de esquerda, não sei se isso afectou. Depois perguntei a uma empregada doméstica que nos conhecia bem.

 

Perguntar a uma empregada doméstica era uma forma de ter a reacção do português comum?

AQ – Sim, de uma pessoa que anda de autocarro. A resposta dela foi fabulosa: “Olhe, professor, temos tanto trabalho que essas coisas não fazem parte das nossas preocupações”. Achei aquilo uma lição (“Você acha que é assim tão importante, que alguém vai ligar alguma coisa?”). As pessoas podem fazer alguns comentários, mas também têm dificuldade em ser agressivos directamente. Nunca senti agressividade nenhuma em Portugal, nunca.

 

É também por ser o professor catedrático, por ser alguém que vem de fora?

AQ – Talvez.

RZ – Fiz 34 sessões de escolas no ano passado, falando da minha escrita, de ser judeu, de muita coisa. Eles sabem...

AQ – Às vezes convidam-nos juntos, eu vou falar de Ciência, ele de Literatura.

RZ – Há dois meses, uma professora disse-me: “Estou preocupada porque o Richard não falou do Alexandre Quintanilha. Pode falar de qualquer assunto, não temos preconceitos”. Eu disse: “Não falei do Alexandre porque ninguém perguntou nada sobre isso, mas agradeço na mesma”.

 

Vamos voltar ao começo da vossa história, em 1978. É sempre uma coisa mágica, no meio de milhões de pessoas, encontrar “a pessoa”. Pela maneira como falam um do outro parece que perceberam imediatamente que era “a pessoa”.

RZ – Eu percebi imediatamente. Ele levou dois ou três dias. Pensava, talvez, que eu fosse drogado [riso].

 

Como é que se conheceram?

AQ – Num café.

RZ – Num café maravilhoso.

AQ – Num café maravilhoso em São Francisco, que se chama Café Flore, como o de Paris. Ia lá ao domingo de manhã tomar um café e comer um muffin. Estava a conversar, estava a falar de Proust – pretensioso e intelectual! – e ele apareceu com mais duas pessoas. De repente os nossos olhos cruzaram-se. Achei-o lindíssimo, porque era e por que é. Eu estava a falar e a pessoa com quem eu estava levantou-se para ir buscar um café; ele veio ter comigo e começou a conversar. “Por que é que não vamos?”. E eu disse: “Deixa-me pelo menos acabar a conversa”. Acabei a conversa e fomos. Estivemos uns três dias juntos, sem parar.

RZ – Fomos ao meu apartamento, que eu partilhava com duas pessoas. No meu quarto não havia móveis. Dormia em cima de um colchão de sumaúma que tinha comprado por cinco dólares. Estava limpo, tinha lençóis, mas eu não tinha dinheiro nenhum.

AQ – A parte mais importante do corpo de uma pessoa é a cara.

 

Porque a cara diz quem é a pessoa? O que é que vê na cara?

AQ – Os olhos, a expressão. Ele tem uns olhos muito expressivos, tem uma boca muito grande, com um sorriso enorme que lhe enche a cara. Tem este nariz maravilhoso, enorme. (A primeira mulher por quem me apaixonei era filha de um casal português/alemão; tinha uns olhos lindíssimos, um nariz muito grande e uma voz quente. Tinha 35 anos e eu tinha 12 anos.)

 

O que é que um nariz assim pronunciado representa para si?

AQ – Deve significar personalidade, ter as coisas muito vincadas.

 

O Richard gosta do seu nariz? Ou gosta mais agora porque o Alexandre gosta?

RZ – Como qualquer adolescente faltava-me a confiança de achar que era bonito. Quase todos os adolescentes passam por essa fase. Teria gostado de ter a cara do Tyrone Power ou do Randolph Scott, e não tinha. Levou-me alguns anos a habituar-me à minha cara. Nisso a minha mãe foi muito importante, disse-me sempre: “És o rapaz mais lindo do mundo”. Depois conheci o Alexandre e ele gostava de mim. Hoje, com 56 anos, estou completamente à vontade dentro do meu corpo.

AQ – Eu nunca estive à vontade dentro do meu corpo. Nunca achei que era atraente. Sabia que era relativamente inteligente, que tinha capacidade de sedução. Sei falar, conheço muitas línguas, tenho charme, quando quero, mas nunca me senti fisicamente atraente. Foram estes 34 anos de vida com ele que me fizeram sentir mais à vontade no meu corpo. Foi uma aprendizagem. Tinha uns mitos, [queria ser como] o Paul Newman.

 

O Alexandre era muito bonito quando tinha 30 anos?

RZ – Era e é, e vai continuar a ser. Era diferente de 99,9 por cento dos homens. Essa coisa de ser bonito não é só uma questão física. É a maneira de ele andar, a maneira de olhar, de falar. É óbvio que tem qualquer coisa de bonito dentro dele. Irradia isso na sua cara, principalmente, mas também no corpo. Já vi homens fisicamente bonitos mas que me metem medo; olho para os seus olhos e não há nada. Era incapaz, mas mesmo incapaz, de dormir com uma pessoa assim, mesmo que fosse a pessoa mais bonita do mundo.

 

Perceberam imediatamente que era “a pessoa”. Isso contrariava desde logo duas gavetas em relação à homossexualidade: a da promiscuidade e a de as relações serem curtas.

RZ – Quando uma pessoa se apaixona por outra, o primeiro ano e meio, ou dois anos, é de uma energia sexual e espiritual formidável. Vive-se numa espécie de euforia corporal e sexual. Pensava que gostaria de construir uma vida com este homem.

AQ – Levei mais tempo a perceber que tínhamos que tomar decisões em conjunto. Quando viemos para Portugal, não foi nada fácil. Eu nunca tinha vivido em Portugal (tinha cá vindo algumas vezes passar férias), ele muito menos. Quando nos mudámos, entrávamos num restaurante e o esterco no chão era uma coisa inacreditável. Nas casas de banho tínhamos medo de tocar nas maçanetas das portas. Combinámos que vínhamos por um período de dois anos, e depois decidíamos se conseguíamos ficar. O choque cultural foi enormíssimo, para ele e para mim.

 

A relação podia ter acabado antes da vinda para Portugal, ou não equacionaram vir um sem o outro?

RZ – Isso era impensável. Tínhamos uma união muito forte.

AQ – E se ele não tivesse conseguido ficar cá, eu também não ficava. Era muito claro.

RZ – Passámos por fases difíceis na nossa relação, mas mais no princípio. Porque o pessoal é jovem, não sabe o que quer. São difíceis os primeiros anos de qualquer relação com pessoas muito jovens, que ainda estão a descobrir a sua identidade.

 

Tiveram aquelas discussões em que parece que não há amanhã? Que não sobrevivem juntos até ao dia seguinte, tal a erosão.

RZ – Nunca tivemos isso.

AQ – Nunca foi a esse ponto.

RZ – Houve alturas em que disse: “Não compreendo este homem! Não compreendo como ele raciocina, a sua maneira de ser”. Eu perguntava: “O que é que estás a dizer, por que é que estás a dizer isso, qual é a tua intenção?”, e ele respondia: “Não vou falar disso, estás a tentar mudar a minha maneira de ser, recuso entrar nessa conversa”.

 

As pessoas não querem mudar?

AQ – Não quererem ser forçadas a analisar-se, a explicar qualquer coisa. Temos muito a mania de que a outra pessoa está a interferir na nossa identidade. Vê-se isso muito na maioria dos casais heterossexuais que conheço. Não falam. O diálogo entre as pessoas é muito pobre. A minha ideia era: “Não sei muito bem porque é que sou assim, mas também não quero saber, estou-me nas tintas”. That’s the way I am, take it or leave it. [É como sou, é pegar ou largar.]

RZ – Ele era muito dedicado ao trabalho. Tinha 33 anos, queria afirmar-se como cientista num sítio muito competitivo. Tinha que trabalhar dez horas por dia durante seis ou sete dias por semana para conseguir o que queria. Eu podia ter compreendido tudo isso, mas ele recusou explicar.

 

Porquê essa competitividade e desejo de vencer?

AQ – Saí de Moçambique para a África do Sul, uma cultura nova, e tive que sobreviver. Depois saí dali e fui para outra cultura completamente nova.

 

Sobreviver num sentido amplo, não num sentido económico.

AQ – Em Joanesburgo os meus pais ainda me ajudaram, mas a partir do 4º ano da faculdade, antes de começar o doutoramento, já não tinham possibilidade. Não podia sair dinheiro de Moçambique, era a Guerra Colonial. Tive que arranjar um lugar como assistente de laboratório em Joanesburgo para me sustentar. E quando fui para Berkeley, levei dois mil dólares para sobreviver uns meses até arranjar trabalho. Estava muito preocupado com esta questão da sobrevivência física, económica, intelectual e científica.

 

Insisto na longevidade da vossa relação, depois da turbulência dos primeiros anos. O mais difícil numa relação, independentemente da orientação sexual dos cônjuges, é estarem tanto tempo juntos, e bem. Por isso as pessoas perguntam: “Qual é o segredo?”

RZ – Temos um bocadinho de sorte, e foi um bocadinho de trabalho. Em qualquer relação que é um verdadeiro casamento (e há casamentos que não são casamentos, são duas pessoas a viver juntas), existe a pessoa A, a pessoa B e o casamento. Há três seres vivos numa relação, e tem que se ter muito cuidado com o terceiro ser vivo: o próprio casamento. Tem que se valorizar, polir, prestar atenção, senão a relação vai acabar. Os dois estamos muito conscientes disso. Apaixonarmo-nos por uma pessoa é muito fácil (com algumas pessoas que conheço acontece de duas em duas semanas). Mas é preciso aprender a respeitar o outro. Para o Alexandre era mais natural, tinha dois pais muito respeitosos. Eu não tinha isso. Os meus pais diziam coisas um ao outro que eu não diria ao inimigo mais feio do mundo, coisas reles. Apaixonar-me por ele era super fácil, mas respeitar a sua opinião, a sua maneira de ser, as coisas que ele dizia e com as quais não concordava, as coisas que ele fez e que não compreendi, levou-me anos.

AQ – Não acredito que haja relações duradouras se cada uma das pessoas não tem a sua própria vida construída. Quando o Richard está a escrever (já sei, porque escreveu vários livros), está de tal maneira obcecado com a escrita que eu sou uma espécie de audiência. E quando estou muito ocupado e ando muito cansado, ele sabe que estou a fazer qualquer coisa que para mim é importante. Nessas alturas temos muito respeito para não exigir mais do outro. Isto aprende-se. Quando a pessoa começa a sentir uma verdadeira realização pessoal com a realização do outro, quando deixa de haver aquela necessidade egocêntrica – “preciso que me dês mais atenção porque estou inseguro” – isso é que é uma relação conseguida.

 

É natural que tenha havido, sobretudo nos primeiros anos, estatutos desiguais. Nem que seja porque existe uma diferença de onze anos entre os dois. O que é que o Richard fazia nos Estados Unidos? A sua formação é Religiões Comparadas.

RZ – Mudei para São Francisco e fiz muita coisa. Era um busboy, limpava as mesas num restaurante e era estafeta. Depois comecei a trabalhar como secretário. Aos 26 anos voltei para a escola, para tirar um mestrado em Jornalismo na Stanford. Mas é verdade, tínhamos patamares diferentes. Eu trabalhava como empregado de mesa e ele não olhava para mim como uma pessoa de menor importância.

 

Era também esse tempo e esse país. Em Portugal a estratificação social, era (e é ainda) mais vincada. Não imagino que nenhum professor da Universidade do Porto vivesse com uma mulher que serve à mesa.

AQ – Pois.

RZ – Mas ele era de Moçambique, com um pai açoriano e uma mãe alemã, muito influenciado pela África do Sul e pelos Estados Unidos. Nos Estados Unidos não se avalia uma pessoa pelo seu trabalho. Um carpinteiro maravilhoso pode ler Proust e Stendhal. Não temos essa ligação directa entre o que uma pessoa faz e a sua capacidade intelectual ou espiritual, ou a sua sensibilidade. Eu não podia ter mantido uma relação com uma pessoa que pensava menos de mim por ser empregado de mesa.

 

Foi em Portugal que começou a sua carreira de escritor. No fundo, foi uma outra vida que começou aqui também.   

RZ – Já tinha escrito muito jornalismo, e tinha escrito 20 e tal contos, e publicado uma dúzia deles em revistas americanas. Chego a Portugal com a ideia para O Último Cabalista de Lisboa. Em Berkeley fui com o cartão do Alexandre à biblioteca tirar livros sobre Portugal, Espanha, século XVI, casas, filosofias, roupa. Continuei a pesquisar aqui, e a mergulhar-me na história portuguesa e no meu romance. Em parte, era a minha maneira, indirecta, de me adaptar a Portugal, e de valorizar Portugal, a história portuguesa.

 

Como é que foi a sua inserção? Quais foram as grandes dificuldades?

RZ – Cheguei aqui desorientado. O meu irmão tinha morrido em Maio de 1989, o meu pai faleceu em Junho de 1990. Na América, temos outra maneira de lidar com a amizade. Somos mais informais, falamos de tudo, logo. Um americano, cinco minutos depois de a conhecer, já está a falar do divórcio e do herpes. Mas o português, em 1990, era ao contrário. Falava de Filosofia, de Arte, do tempo, de tudo menos da vida pessoal. Eu não consigo estabelecer uma relação duradoura e profunda de amizade sem ter a possibilidade de falar da minha vida íntima, medos, dúvidas, problemas.

 

Sem falar sobre aquilo que verdadeiramente lhe interessava.

AQ – Os portugueses chegam a fazer isso, às vezes, depois de uma relação duradoura. Mas Portugal nos últimos anos mudou de uma forma extraordinária, e acompanhar isso foi muito interessante. (Uma das coisas que mais me impressionaram foi o empowerment das mulheres. O 25 de Abril teve um impacto muito maior nas mulheres do que teve nos homens. Elas estavam mais reprimidas. E ver a mudança dramática que houve no investimento na Ciência, na Educação, que afectava jovens que estavam ao pé de nós – ele também esteve uns anos a ensinar –, foi muito excitante.)

 

Estiveram para regressar aos Estados Unidos em algum momento?

AQ – Estivemos. O director da divisão onde trabalhava veio cá várias vezes e de cada vez perguntava-me se não queria voltar. Estávamos neste choque cultural e a tentação de voltar era enorme.

RZ – Ele chegou com grandes projectos. Um deles era criar o que viria a ser o Instituto de Biologia Molecular. Além de todos os problemas [decorrentes] de criar um centro de investigação com centenas de cientistas, havia pessoas que queriam que falhasse. Portugal é um país muito pequeno, com muitas rivalidades, muita mesquinhez. Desculpe dizer, mas todos sabemos isso.

 

Já pode dizer porque já é português. Nós, portugueses, não gostamos que os de fora digam mal de nós, mas dizemos o pior possível de nós mesmos.

RZ – Estas coisas existem no Estados Unidos, também. Mas lá, como é um país muitíssimo maior, é possível fazer uma outra vida num outro lugar.

AQ – Eu não sabia como é que funcionavam as coisas. Recusava-me a fazer telefonemas a pedir favores. Em Portugal, as coisas eram assim. Não quero que fique com a ideia de que as rivalidades foram muito grandes. Havia uma ou outra pessoa que não gostava de mim. Também tive muita ajuda, muita gente que achou que este projecto valia a pena, que deu muito apoio. Tive apoio de Lisboa para desenvolver um novo instituto, e depois para fundir este com outro, o Instituto de Engenharia Biomédica, para construir um laboratório novo.

 

Ao longo destes anos, pensaram em casar?

RZ – Estamos casados há dois anos e um mês. Antes não era possível.

 

Nos Estados Unidos também não era possível?

AQ – Passou a ser possível nos últimos dez, 15 anos, [em alguns estados]. Demos passos pequeninos. Há 30 anos que temos testamentos, que fizemos nos Estados Unidos, dizendo que tudo o que é meu é dele e que tudo o que é dele é para mim, se algum de nós falecer.

RZ – Quando a SIDA começou, o cônjuge do doente não podia visitá-lo porque não estavam casados. Não tinha direito porque não fazia parte da família. Queríamos evitar isso e tomámos medidas.

AQ – Outra coisa que também fizemos muito cedo foi o testamento vital, que já existia lá, a exigir que o médico não tomasse medidas suplementares para manter a pessoa viva. O casamento, para mim, nunca teve um significado muito grande, nem simbólico nem pessoal. Tem um significado muito grande, sim, em termos de direitos e deveres das duas pessoas. Mas quando casámos, como eu tinha mais de 60 anos, o casamento teve de ser com separação de bens. Casámos com separação de bens e temos um testamento escrito num notário português.

RZ – Está tudo nos dois nomes, as casas, o dinheiro, para ser mais seguro.

 

Como foi o casamento?

AQ – Convidámos um número muito pequeno de pessoas, que são muito íntimas. Ficaram muito emocionados, foi o primeiro casamento gay em que estiveram. E o notário trouxe-nos um presente de casamento, um disco de música sefardita galega. Uma coisa lindíssima.

RZ – Ele tinha pesquisado os dois na Internet e sabia que eu tinha escrito sobre assuntos judeus.

AQ – Quando nos mandou o certificado, mandou uma carta em que nos agradecia por lhe termos dado a oportunidade de realizar esta cerimónia pela primeira vez na vida. Fiquei muito comovido. Às vezes fico surpreendido. Entro num avião e vem uma hospedeira dizer-me que tenho que dizer ao Richard que ela gostou imenso do último livro dele. Há aqui uma espécie de – não sei como é que se diz em português... – conluio: as pessoas acham que isto é especial.

 

Também sente isso?

RZ – Posso estar nos sítios mais pequenos de Portugal, aldeias pequenas, e as pessoas vêm ter comigo, agradecem os livros e mandam beijinhos para o Alexandre. É uma grande boa vontade por parte de muita gente.

AQ – Não estou nada convencido de que os preconceitos desapareceram. Mas já começa a haver, em muitos casos, uma certa vergonha dos preconceitos.

 

Por que é que para si foi importante casar?

RZ – Simbolismo. Ainda há sítios no mundo em que ser homossexual pode ser punido com sentença de morte, com penas de dez anos, ou mais, de prisão. Para mim, como escritor, como ser humano, o facto de ser um crime exprimir o que é melhor dentro de nós, a afeição, a paixão, a solidariedade e a amizade, é inconcebivelmente injusto. É muito importante reivindicarmos os nossos direitos no ocidente, para que um jovem que tenha acesso à Internet no Burkina Faso, na Nigéria ou na Birmânia, possa ir ao site do Público em Portugal [e ler esta entrevista].

 

É também por isso que dão a entrevista?

RZ – Claro que sim. Vivi num mundo em que não era possível as pessoas das pequenas aldeias dos Estados Unidos assumirem-se. E em Portugal talvez ainda não seja possível, em aldeias do interior. Falo disto para que aquela jovem lésbica de Castelo Branco, ou o jovem transexual de Fafe possam olhar para mim e para o Alexandre e descobrir: “Não tenho que mudar para ser aceite. Posso ser como sou. Tenho os mesmos direitos dos outros. Não há cidadãos de segunda em Portugal”.

AQ – Pensei muito sobre se devia dar esta entrevista ou não, porque não tenho que explicar rigorosamente nada. As pessoas são aquilo que fazem e aquilo que são, e não aquilo que dizem. Há uma pequenina coisa que é muito importante: a questão dos role models. A grande diferença entre um casal heterossexual e homossexual, para já – no futuro não vai ser assim – é que os casais heterossexuais têm filhos, têm netos. No nosso caso, como não temos filhos (já pensámos adoptar, volta e meia, mas não foi uma coisa muito premente), essas relações têm que ser substituídas por outras. Temos que inventar outras partes da nossa relação que sejam alternativas a essas. Temos que nos reinventar e dar a noção a outros gay de que isso é possível, realizável. É preciso que o mundo à nossa volta perceba que não me acho especial, positiva ou negativamente, por ser assim. Tive muita sorte em encontrar uma pessoa como o Richard, tive muita sorte em ter os pais que tive, em viver nos sítios onde vivi, apesar de às vezes me sentir muito só e de ter momentos muito difíceis de afirmação pessoal. Isso também é uma história que vale a pena divulgar. Numa sociedade que está cada vez mais competitiva, é importante as pessoas falarem daquilo que não é competição selvagem. É a partilha, é sentirmos – isto parece uma treta... – que o mundo, se tivermos boa vontade, e se funcionarmos de boa fé, vale a pena.

 

Que vida fazem na vossa casa de fim de semana, em Cristelo?

AQ – Muito desse tempo passamos no jardim, a cavar, a cortar, a plantar. Vamos para o jardim (é grande, estamos em sítios diferentes), encontramo-nos à hora do almoço, estamos juntos, depois vamos outra vez para o jardim.

RZ – Tenho uma vantagem: trabalho em casa e só faço o que quero. Aos 56 anos consegui isso. Cada vez mais recuso sessões, promoções, porque estou muito bem comigo, estou muito bem com o Alexandre, estou muito bem em casa. Adoro escrever, adoro fazer jardinagem. Por que é que vou interromper isso?

AQ – Há quatro anos decidimos que todos os anos passamos cinco semanas a viajar nas montanhas dos Estados Unidos.

 

É quando encarna o personagem Clem?

RZ – Alexandre não é um nome [que vá bem com aquela paisagem]. Chamo-lhe Clem, como Clemente, e falo com sotaque do west. [riso]

AQ – Very entertaining. [riso] Não levamos telemóveis nem computadores. Estou a descobrir uma América que não conhecia. Tinha aquele snobismo de que em África era tudo mais bonito, mais selvagem, e que ir para o meio dos Estados Unidos só para ver campos de trigo e de milho não me interessava nada. As montanhas são lindíssimas.

 

Fazem as cinco semanas de seguida?

AQ – Não. Eu preciso de Nova Iorque, mais do que ele. Preciso de lá estar uns dez dias todos os anos. Fazemos cinco dias em Nova Iorque, depois vamos para um sítio qualquer. A última vez estivemos em Denver, alugámos um carro e fomos passear pelas montanhas. Ficamos em motéis. Parar o carro à porta do quarto é uma maravilha, lembra-me a África do Sul. As pessoas não são sofisticadas, mas são muito genuínas. Nunca falamos de sexualidade ou religião, mas falamos de tudo o resto, de arte, de música, de Portugal. Os americanos em geral são amigáveis e informais.

 

Isso também vos faz perceber que para essa América não poderiam voltar, nessa não poderiam viver.

RZ – Não sei.

AQ – Daqui a dois anos tenho 70 anos, tenho que me reformar. Uma das coisas que andamos a discutir é se vamos passar períodos de dois meses, duas vezes por ano, nos Estados Unidos. A mim falta-me… O Richard às vezes goza comigo porque tenho que ir aos supermercados onde ia.

RZ – É muito sentimental!, gosta de ir às lojas onde a minha mãe andava.

AQ – Vou aos supermercados onde íamos fazer compras. Às vezes ela vinha connosco. Tenho um gosto enorme em ir aos supermercados, com o mesmo cheiro. Chegar lá assim ao género do Proust, que comia a madalena [e recuperava a sua infância]. A minha madalena são os supermercados! [riso].

RZ – É do género do Pingo Doce, muito pouco interessante.

 

É muito pouco Proust.

AQ – Mas cada um tem o Proust que merece!

 

Retomo a questão: seria possível viverem nessa América profunda e viveram aí abertamente a vossa homossexualidade?

RZ – Sim. O bairro em que vivia quando conheci o Alexandre, o Castro, é um bairro residencial, simpático. Quando estive lá no fim dos anos 70, a maioria das pessoas eram jovens que vinham de Tallahassee, da Florida, de Atlanta, de Denver, que iam para São Francisco encontrar felicidade. Hoje o Castro é um sítio de homens com mais de 55 anos

AQ – São os que ficaram.

RZ – Os jovens que hoje em dia vivem em Tallahassee, em Albany, em Bufallo, em Cleveland, não têm que ir para Nova Iorque ou São Francisco. Podem permanecer na sua cidade e ter uma vida realizada, abertamente homossexual. Isso é uma mudança muito grande nos Estados Unidos.

 

É recente?

RZ – É dos últimos dez anos. Em parte, é um efeito da televisão, de programas como Will & Grace. Apesar de ser um país de religião fundamentalista, nas cidades, para pessoas entre os 18 e os 35 anos, ser homossexual é um não-assunto, independentemente de se ser republicano ou democrata, conservador ou progressista.

AQ – As séries televisivas tiveram um impacto enorme sobre isso. Da mesma maneira que as séries brasileiras, quando chegaram a Portugal, tiveram um impacto enorme na forma de pensar.

RZ – Na Europa, ter um presidente da câmara de Paris ou de Berlim, abertamente homossexual, muda tudo. Agora há pessoas com cargos de respeito que são homossexuais e que têm uma vida como qualquer um. Ele não dá ordens gay para limpar as ruas, ele dá ordens como presidente da câmara. Quando escrevo um livro, não escrevo um livro homossexual, estou a escrever um romance. Estes rótulos vão deixar de existir. Estamos a lutar por isso.

 

A aprovação do casamento gay em Portugal foi um passo de gigante para que isto deixe de ser um assunto?

AQ – Sim. Ter sido aprovado e ter tido pouca contestação, o que é uma coisa muito interessante.

RZ – Toda aquela gente que previa o fim do mundo…

AQ – Só daqui a vários anos vamos perceber o impacto. Uma das razões pelas quais tive dúvidas sobre dar esta entrevista foi porque já quase deixou de ser um assunto em Portugal. Tinha medo que as pessoas pensassem que estava a fazer a apologia de qualquer coisa, ou que havia a necessidade de falar sobre um assunto.

RZ – É um risco. Não quero ser conhecido como um escritor gay, como também não quero ser conhecido como escritor judeu, ou escritor americano. Quero ser conhecido como um bom escritor. Decidi correr esse risco. Os benefícios para a tal jovem de Castelo Branco e para o jovem de Fafe são mais importantes. Há pessoas que estão a sofrer imenso no mundo simplesmente por amar uma pessoa do mesmo sexo.

 

Falam inglês um com o outro e esta entrevista foi em português. Teria sido diferente se fosse em inglês?

AQ – Provavelmente. Usei muitas palavras inglesas. Como é que seria diferente? Não sei.

RZ – Talvez eu brincasse mais. O meu vocabulário é maior em inglês. As nuances da linguagem, consigo medi-las de uma forma diferente. Não me custa nada falar português. Gosto de ser português. Sou uma pessoa muito mais rica, muito mais confiante, mais capaz de escrever excelentes livros – espero eu – por ter esta experiência de viver há 22 anos em Portugal. E também por ter mantido uma relação de 34 anos com o Alexandre. Não sou a mesma pessoa que escreveu O Último Cabalista de Lisboa. Essa pessoa já não existe, felizmente. Uma pessoa que não evolui é um ser morto.

 

Querem dizer mais alguma coisa ou ficamos por aqui?

RZ – Estávamos a falar das razões pelas quais era possível manter uma relação durante tanto tempo, e só queria acrescentar que o Alexandre é o meu melhor amigo. Não posso imaginar viver 34 anos com uma pessoa que não fosse o meu mais profundo e mais importante amigo. Adoro passar dias inteiros com ele. Preciso de passar muito tempo sozinho, mas posso passar esse tempo com ele. Eu sozinho ou eu com ele é a mesma coisa. Ele esteve doente, há cinco anos, com pneumonia, e teve de ficar em casa três meses. Estava deitado e eu, como Florence Nightingale, ou Dr. House, estava aqui todos os dias. Era como uma lua-de-mel. Passava 24 horas por dia com ele, e era espectacular. Não há nada que não lhe possa dizer, não sinto qualquer limitação.

AQ – Queria dizer duas coisas. A primeira é que votei no Obama muito antes de ele dizer que estava de acordo com o casamento homossexual. E voltei a votar este ano. Espero que ganhe. [entrevista realizada antes das eleições] Estou com muito receio. O Mitt Romney é muito mais perigoso do que dá a entender. Como é mais inteligente que o George W. Bush, é capaz de ser muito mais perigoso do que ele. A outra questão: estou muito preocupado com o crescimento da iniquidade em Portugal.

                                                                                                                                       

É um país muito mais iníquo, agora?

AQ – Sim. É das coisas mais graves que vi nestes últimos 20 anos. É criminoso que nestas propostas [do orçamento de Estado] o aumento dos impostos dos mais ricos seja em percentagens mais baixas que o dos mais pobres. Os pais do Richard viveram o tempo do Roosevelt, que criou trabalho depois da Grande Depressão, o New Deal. Gostaria muito que houvesse um New Deal em Portugal. Os que têm mais deviam contribuir mais, os que têm menos deviam contribuir menos. São os dois grandes dilemas nesta altura, a iniquidade e os miúdos a sentirem que não têm escolhas, que a única escolha é ir lá para fora. A consequência disso sobre a saúde mental dos portugueses vai ser muito séria. Já não tínhamos uma saúde mental muito boa [riso].

 

 

Publicado originalmente no Público em Novembro de 2012