Clara de Sousa
Clara de Sousa é uma mulher que está de bem com a vida. É pivot do jornal da noite da SIC, função que alterna com Rodrigo Guedes de Carvalho. Editou um livro de cozinha onde ensina a fazer as coisas que mais gosta de fazer. À moda da sua mãe? Sim, a cozinha é uma porta de entrada para saber dela, para falar do que lhe é essencial.
As nossas mães diziam que um homem se prende pelo bico. É verdade?
Conquista-se pela boca, dizia a minha. Há muitas maneiras de conquistar um homem. Não só os homens. Conquistam-se afectos. Por alguma razão as comidas das nossas mães são as melhores – vêm carregadas de afectos. Quanto aos homens, pode funcionar numa primeira fase, como uma arma; mas é acessório.
Neste ditado, estava também contida uma velha representação da mulher como fada do lar.
Eu não me realizaria sendo apenas uma fada do lar. Não me sentiria completa se não tivesse uma acelerada actividade intelectual. A fada do lar, no meu caso, funciona como um modo de equilíbrio.
Na nossa geração, as coisas mudaram substancialmente no que concerne ao papel da mulher na sociedade. E a cozinha deixou de ser vista como um lugar subalterno e exclusivo das mulheres. Os homens entraram em casa.
São estigmas. Não gosto de colocar rótulos. No noutro dia estava a ver o único livro de cozinha que a minha mãe me pôs no meu enxoval – sim, porque sou do tempo em que se fazia o enxoval à filha; eu não estou a fazer o enxoval à minha filha… – que falava da fada do lar. Se é uma imagem Estado Novo? Se para umas mulheres foi uma imposição, para outras não foi.
A cozinha para si não foi uma imposição, presumo. Com quem é que aprendeu a cozinhar?
Quando comecei a fazer televisão e a dar entrevistas disse que a minha mãe era cozinheira profissional. Sempre o disse com a maior naturalidade. Alguém comentou comigo que não era qualquer pivot de televisão que confessava que a mãe era cozinheira. Como se isso fosse uma vergonha! Vergonha é mentir e inventar passados que não temos. Gosto mais de ser do que de parecer, e por isso sempre o disse. Ser cozinheira, ser agricultor é um talento, é um tesouro. Tudo aquilo que presenciei, de contacto com a terra, com os animais, com a verdade do dia a dia, com a minha mãe a fazer casamentos e baptizados, e eu a ajudá-la a fazer croquetes e rissóis, dezenas e dezenas, para ela congelar e vender, tudo isso me enriqueceu.
Fale-me mais desse espaço de partilha que a cozinha representou na sua vida.
O coração da casa sempre foi a cozinha. A porta de entrada dava directamente para a cozinha, e dali fazia-se a distribuição da casa. Era onde passávamos mais tempo. Tive o privilégio de ter uma mestre, de poder ver como é que fazia. Foi um tempo de aprendizagem e de partilha, e de construção de personalidade, e de transmissão de valores.
Os deveres da escola faziam-se na cozinha, com a mãe por perto. Foi assim consigo?
Isso não tive, porque a minha mãe saía de manhã e chegava às oito da noite. A essa hora já tinha os meus trabalhos de casa feitos. Comecei a cozinhar cedo, nem dez anos tinha. A minha mãe nunca andou em cima de mim por causa das facas. Eu cortava, descascava. A minha mãe ensinou-me a cortar à maneira antiga, na mão. Obviamente também me cortei, e ela estava lá para sarar a ferida, mas não era ansiosa em relação a isso. Eu sou. A energia que se tem na confecção das refeições é uma energia diferente da que se tem na sala, no quarto. Há um apelo diferente.
Porque é que teve agora necessidade de fazer um livro de cozinha? E isso parece corresponder a uma fase em que está muito bem consigo própria.
Mas eu sempre estive bem comigo própria. A percepção que as pessoas têm disso pode ser outra. Não tive necessidade nenhuma. Até podia ser prejudicial. Uma jornalista a fazer um livro de cozinha?
Uma necessidade afectiva, e não carreirística. Era a isso que me referia.
Não. Eu perguntava-me a quem podia interessar o que faço na cozinha. Interessa aos meus amigos, à minha família, aos meus colegas (partilhamos receitas, trazemos coisas, acabei de provar uma bolo delicioso sem açúcar que uma colega trouxe); mas interessa ao público em geral? Depois fui ao programa da Conceição Lino e percebi que as pessoas estiveram durante anos de costas voltadas para a cozinha, e agora há a necessidade de um reencontro. Como se fosse um back to basics. O que mostrei, nos três pratos que fiz no programa da Conceição, é que era possível cozinhar rapidamente e de modo descomplicado.
Sente que se expôs mais a pretexto deste livro? Porque ele trouxe-a no coração da casa, na relação com a sua mãe.
Andamos todos com muito pudor, e cheios de preconceitos, e com dificuldade em abrir o coração. Várias vezes tinha falado do meu gosto pela cozinha, da minha Vespa. Este livro deu mais exposição, sim, a tudo isto. Mas talvez isto aproxime as pessoas. Uns têm um trabalho mais físico, outros um trabalho mais intelectual. Uns têm a responsabilidade por uma empresa, outros perante o público de uma televisão. É uma questão de gestão de responsabilidades. De que forma é que os afectos afectam o meu trabalho intelectual? Acho que não. Acho que o valorizam. Os estudos mostram que a inteligência emocional é cada vez mais importante na vida das pessoas. Mais importante do que ter um QI de 130. Aprendemos a tomar melhores decisões [recorrendo à inteligência emocional].
E se a quisermos conhecer sem ser na cozinha?
Não conhecem. Não vale a pena tentar. Uma coisa é falar dos afectos de família, outra é falarmos de namorados e maridos e homens.
Não era esse o meu caminho. Em todo o caso, pergunto porque é que ficou cada vez mais resguardada em relação a quem é?
A partir do momento em que me vi envolvida em processos, invenções, manipulações. Diria que uns 90% das coisas que são escritas sobre a minha vida são mentira.
Impressionou-a ter sido alvo desse voyeurismo? Normalmente um pivot de televisão não é tão atacado, e sim actrizes, apresentadoras, modelos.
Neste momento, em Portugal, basta ser televisivo para ter interesse. Seja no jornalismo, seja no entretenimento. No meu caso, teve que ver com o meu primeiro divórcio, que exploraram de uma maneira vergonhosa. Tudo começou com isso e com o Correio da Manhã.
Que promoveu um concurso que a elegeu como a mulher mais sexy do país.
As pessoas votam para dizer que gostam de alguém, que gostam da maneira como ela se afirma, também em termos físicos, e tudo encaixa naquele rótulo. Não me importa o interesse [que têm em mim]. O que me chateia são as mentiras. Há limites.
Esse rótulo, da mais sexy, incomodou-a especialmente por ser jornalista? Outro estigma: as mulheres bonitas, as louras, têm que provar o dobro.
Só por ser mulher é preciso provar o dobro. Se for uma mulher com uma série de atributos, mais difícil se torna. Mas acho que não me posso queixar. Não me afectou em termos profissionais.
Nós não estamos num pedestal, intocáveis, a fazer vidas de princesa, sem partir uma unha. As pessoas, fora do trabalho, têm vidas normais. Apaixonam-se, casam, descasam, têm filhos, adoptam. Muitos têm problemas de dinheiro, outros querem fazer obras na casa e ainda não conseguiram. Uns têm empregada, outros não têm. Porque é que há-de ser tão diferente? Por causa do sonho? Esse sonho é uma grande ilusão.
Alguma vez o teve?
Não. Nunca. Para quê? Teria que ter uma vida muito triste… Os meus sonhos de criança eram disparatados. Queria ser cantora, como todas as meninas, ou cabeleireira. Ah, e encontrar um príncipe e ser feliz para sempre. Mas não me lembro de projectar muito o meu futuro. Tal como hoje. O tempo ensinou-me que não vale a pena fazer projecções. O melhor é viver o presente e não me angustiar com o passado. Até hoje, tudo o que considerei que era importante para mim, consegui. Tenho uma casa que fiz de raiz à minha medida, à medida da minha família. Isso deixa-me muito feliz. Tenho dois filhos.
E os seus olhos riem só de falar neles…
Há mais do que algo que vem de nós? Há mulheres que não sentem isto, é legítimo, como há umas que não gostam de cozinha. Tenho dois cães. Tenho o meu tempo bem organizado. Tenho duas páginas de Facebook; dá-me trabalho, mas dá-me prazer interagir com as pessoas. Obviamente tive momentos duros. A morte da minha mãe foi uma coisa que me secou. Foi há onze anos. Fui encontrar forças em mim e na minha função de mãe dos meus filhos. Nos momentos de fraqueza temos de encontrar outros portos de abrigo. Não podemos ficar ancorados numa coisa má quando à volta temos vinte boas. Mesmo que a coisa má pareça ter mais 200 quilos do que as boas.
Como é que se fez assim, resistente?
É a minha personalidade. Cresci a ver mulheres fortes. Apesar das adversidades, apesar da dureza. Encontrar sempre soluções, nunca ficar presa nos problemas – foi o que vi a minha mãe fazer, foi o que vi a minha avó fazer. Não lhes chego aos calcanhares nessa força. Mas o que deixaram em mim tem sido a minha reserva para os momentos difíceis. E esses momentos dão-nos mais força, mais tarde ou mais cedo.
Porque é que nunca se deslumbrou? Conquistou o que muitas pessoas ambicionam. Ser famoso, aparecer na televisão, não ter problemas de dinheiro.
Mas não era aparecer na televisão que eu queria quando quis ser jornalista. É fácil o deslumbramento, se não tivermos uma ligação à terra. Quando aquilo acaba, o mundo acaba. Nunca permitiria que acontecesse comigo. Nunca me esqueci de onde é que eu vinha. Quero ser reconhecida pelo meu trabalho. Admiração? Pode ser positiva. Não é a Mariah Carey a flutuar, isso é Hollywood, não é a nossa realidade. Podem ser os mais novos que dizem que fomos um role model para eles. Que possa inspirar? Também acho bonito.
Imagine uma refeição que gostasse de cozinhar para os seus filhos, e que tivesse uma forte carga simbólica…
Pode ser um prato que eventualmente a minha mãe fizesse para mim? O meu filho é doido por tiramisu com rum; e nunca tirei o rum. E os meus filhos gostam de café, e deixo-os beber café; eu bebia café com a idade deles, e mais do que eles. O que é que faria? É uma recordação minha: bolo de bolacha. É um bolo de criança que os adultos sempre comem. Talvez seja uma prova de que as crianças nunca saem de dentro de nós.
Publicado originalmente na revista Máxima em 2012