Fernanda Serrano
Quer esquecer. Quer que não lhe lembrem. Quer ser olhada como um caso de sucesso. Fernanda Serrano não quer ser a coitadinha. Fernanda Serrano quer assistir à sua velhice.
Viveu uma situação nada simpática. Trágica, na verdade. Mas fala-lhe ainda com bons modos. Com um misto de desprezo que não lhe atribui a importância maligna que ela tem e um respeito que lhe reconhece a importância maligna que ela tem. Como se dependesse da delicadeza desse estranho. Um cancro é um cancro, mas ela não conseguia chamar-lhe assim. Carcinoma é mais simpático. Quer isto dizer, não leva a sentença de morte.
Fernanda teve medo de morrer. Fernanda decidiu viver. Escolheu acreditar no tratamento e na cura. Desenhou sobrancelhas para dormir. Fez, como Roberto Benigni, da doença um jogo. Não jogou xadrez com a morte. Fintou-a, tendo o filho na assistência.
Mas não só o filho. Também o marido, os pais, os amigos, todos. Queria ser uma mulher forte e corajosa. Um exemplo para os que seguem a sua vida há anos através das novelas e das revistas. Jogou esse jogo consigo: não ia desapontá-los, ia vencer a batalha. Não ia chorar à frente deles, ia ser mais forte que a coisa maldita. La fleur du mal.
Fala do que lhe aconteceu com um sorriso contínuo. Imensamente nervoso. Podia estar a falar do dia de sol, e o sorriso seria o mesmo. Não perde a compostura. Não é para mim, para os leitores: é para ela mesma. Por breves momentos a cara transfigura-se, quando se indigna: porquê eu?
Sim, porquê ela? Um ícone de beleza. A cara de um banco. Uma heroína das novelas da TVI. O casamento dela a que assistimos todos. O nascimento dos filhos que acompanhámos como se fôssemos padrinhos. Uma vida feliz. E depois, uma sentença com uma gravidade bíblica… “Porquê, meu Deus?” Ínvios caminhos, os da vida de todos os dias.
Esta semana deu uma conferência de imprensa para explicar que está livre de perigo. Que clinicamente só pode ser considerada curada daqui a cinco anos. Fará a vigilância de três em três meses, depois de seis em seis, depois de ano a ano. Falámos durante uma hora e meia no dia seguinte.
Em Fevereiro será Frida Kahlo na peça Viva la Vida. Frida, a sofredora, que viveu o tormento físico até à morte. Fernanda, no princípio de Novembro, numa ferida ainda aberta. Primeira de duas entrevistas depois do cancro da mama.
A primeira vez que sentiu o nódulo foi no dia do nascimento da sua filha. Coincidência macabra.
Eu e a minha mãe pensámos: o que quer que seja que esteja ali, tem de sair. Era um nódulo perfeitamente visível. Durante a gravidez estamos sempre a fazer apalpação, massagens, com cremes; nunca me tinha apercebido daquilo, deve ter eclodido nessa altura. Não sei como. Mas foquei-me no que era importante: amamentar, um novo ser na minha vida, a felicidade era imensa. Dois meses depois fui fazer a ecografia mamária. Nesse mesmo dia foi feita uma biopsia. Percebi logo que algo errado estava a acontecer.
Na cara das pessoas?
Sim. Em segundos, percebe-se o peso, a carga. Eu já tinha vivido aquilo, ainda que de modo ficcionado. Tinha interpretado uma personagem, numa novela, a quem é diagnosticado cancro da mama. Todos aqueles passos, aquele trabalho de laboratório, já o tinha feito.
E contudo, não tinha nada que ver.
Não tinha nada que ver. Era um passo a seguir ao outro, uma confirmação cadenciada. Um dejà vu. Quando me preparava para fazer a biopsia, estava de pé, na cabine onde trocamos de roupa, e a sensação de medo foi tão forte… Como se soubesse o que vinha a seguir. Não quis sobrepor as emoções e esperar pelos factos. Mas não posso esquecer o medo que senti nessa cabine.
Perguntou directamente o que tinha?
Perguntei. A doutora disse que ia fazer a biopsia porque “algo a estava a deixar inquieta”. Transmitiu-me isto de forma positiva. Mas há sempre algo que detectamos. Passei esta inquietação ao Pedro; por sua iniciativa foi informar-se junto da médica. Fui preparada por ele para receber a notícia, a informação foi doseada. Foi a constatação gradual de um desfecho… [pausa] nada simpático.
Trágico.
Na altura é. Tenho agora algum distanciamento, mas nunca me consigo ausentar desses momentos. [Na conferência de imprensa] pedi que me ajudassem a esquecer esta fase; mas não sei se vou conseguir. Uma prova destas não se esquece nunca.
Porque é que usa expressões como “nada simpático” e não escolhe palavras mais fortes e definitivas?
Porque agora já passou. E quero deixar clara a mensagem de que é possível acreditar num tratamento e numa cura.
As palavras têm peso. A doença pode ser chamada de diferentes maneiras. “Aquilo”, o “cancro”, o “tumor”, o “mal”.
No início não conseguia dizer a palavra cancro. Dizia carcinoma. Era uma forma mais elaborada e que não me lembrava logo o que aquilo era. “Tenho um carcinoma no peito”. Um dia perguntei-me porque é que não conseguia dizer a outra palavra, que é mais comum e mais dura. E é por isso: eu não conseguia ouvir-me dizer aquela palavra, e muito menos ouvir-me dizer que eu tinha aquela doença. Para além da fase da injustiça, da fase da revolta, da fase do medo, há também a fase da negação. Cheguei, por momentos, a pensar: vou fingir que não tenho isto. Não queria acreditar. É como as crianças fazem: brincam ao faz de conta. O desespero, o não conhecer o desfecho leva-nos à infantilização. Nestes momentos, tudo vale. Tudo o que diminui o sofrimento, tudo o que nos poupa, vale. Estas foram as minhas defesas.
Não por acaso, foi fazer o exame com a sua mãe.
E porquê? Não quereria vê-la sofrer. Eu teria de estar obrigatoriamente mais forte ao receber a notícia. Porque a tinha ao meu lado. A minha filha estava comigo também. Nessa altura, ainda amamentava.
Ela mamava nos dois peitos?
Sim. Parei por ordem clínica no dia seguinte. Tive de secar o leite. Tudo isto foi bem trabalhado. Pouparam-me a um choque brutal.
Mas apesar da preparação, nunca se está preparado.
Nunca. “Olhe Fernanda, afinal não era nada”. Era o que eu queria receber como telefonema. “Afinal, isto é um tumor benigno”. Foi o que sempre estive à espera de ouvir – até ao último momento. Recebi o resultado por telefone, insisti imenso; a minha inquietação era tal que não aguardei pelo resultado escrito. O Pedro estava ao meu lado e percebi na cara dele que já sabia. Ele tinha tentado preparar-me, mas é sempre um choque. Acreditamos na réstia de esperança.
Foi também por isso que demorou dois meses a fazer a ecografia?
Até ao exame, acreditei que não era nada maligno. Associei isso ao pós-parto: caroços de leite, subida do leite, um quisto sebáceo. Mas nunca fiquei totalmente descansada.
Apesar de haver o fantasma do cancro da mama na sua família, os seus conhecimentos eram diminutos. Não sabia que a mulher fica especialmente exposta, que há um défice imunitário durante a gravidez.
Não sabia, não. Questionei médicos, estava tão revoltada… Como é que nós, mulheres, não temos esta informação? Médicos, técnicos de saúde, ninguém ficou espantado – é muito comum.
Nessa semana de espera, quem estava a par?
O Pedro, os meus pais, e eu. Soube isto numa segunda-feira à noite, e na terça de manhã ligou-me a Sandra Faria [amiga, presta-lhe apoio profissional]. Eu estava devastada.
Tinha conseguido dormir?
Consegui sempre. Pensava que era uma das formas que tinha para combater a situação: estar descansada para ter forças. E, pelo menos nas horas em que estava a dormir, não pensava. Era uma forma de defesa também. Arranjamos mecanismos de defesa constantemente.
Sonhou com a doença?
Nunca. Aliás, sonhava com coisas tão boas, que, quando acordava e constatava que a minha realidade era outra, vinha uma tristeza imensa. O que me apetecia era, literalmente, estar colada aos meus filhos. Há uma mistura, uma diversidade tal de sentimentos…, e isto ao longo do dia.
O calendário altera-se e passa a ser dominado por isto? Passa a ser: sei da doença há um dia, há um mês, faço tratamento no dia X, estou a X semanas de acabar o tratamento.
São dias que não esquecemos. No dia 4 de Março de 2004 rapei o cabelo para a novela Queridas Feras. No dia 4 de Março de 2005 nasceu o meu primeiro filho, Santiago. Estava marcada para o dia 4 de Março a minha cirurgia. Pedi que não fosse no dia de aniversário do meu filho. Então, foi dia 7 de Março. O dia da cirurgia, o dia do começo e o dia do final da quimioterapia e da radioterapia, são dias que não vou esquecer. Para o ano lembrar-me-ei desses dias e quero estar a celebrar coisas boas.
No primeiro dia, dominava-a a incredulidade? O “porquê eu?”
É uma incompreensão total. Várias vezes ouvi isso: “Não tentes procurar uma resposta porque ela não existe”. Mas com tanta gente no planeta, porquê eu? Perdoem-me se penso que existem pessoas que merecem coisas más. Porquê, porquê, porquê? Porquê eu? Porquê, Deus? Mas a seguir penso: acontece um acidente, morrem 82 crianças; que mal fizeram estas crianças para lhes ter acontecido tal vicissitude? Não podemos buscar estas respostas, este não é o caminho. Havia situações muito piores, sem retorno. Eu era mais um caso.
Desde o princípio estabeleceu como meta sobreviver à batalha.
Pensei: isto não vai ser impossível. Senti um forte apoio clínico. As únicas pessoas que ouvimos a 100% são os médicos – mais ninguém. O resto: as mensagens simpáticas são boas de ouvir, os exemplos de sucesso são óptimos de seguir – só quis saber destes casos; mas a única coisa que levava em consideração eram os médicos. Disseram-me que só depois da cirurgia era possível estabelecer o protocolo de quimioterapia e radioterapia. O médico oncologista, o Dr. Costa Marques, determinou que seriam seis ciclos de quimioterapia e 33 ciclos de radioterapia – supervisionados pela Dra. Maria Emília Pereira. Pertencem à equipa do Dr. Santos Costa que faz isto há 36 anos; descansa-nos muito ouvir uma pessoa que há 36 anos só faz isto.
Foi a segunda opinião que ouviu. O que é que a fez procurar uma segunda opinião?
A primeira não era tão simpática. Quero salientar a importância de ouvir uma segunda opinião, uma terceira, uma quarta, uma quinta, as que entenderem. A primeira opinião que ouvi era completamente diferente, e assustadora. O Pedro marcou consulta com o Dr. Santos Costa, e era outro diagnóstico. Mas o que mais me aquietou foi a calma e a confiança com que me transmitiu o seguinte: a primeira abordagem será uma cirurgia conservadora da mama, uma tumorectomia.
Teve muito medo de perder o peito?
Tive. Há sempre aquele lado da mulher… É importante ter uma pessoa ao nosso lado que nos faz compreender que somos uma pessoa por inteiro, e não um órgão.
Quando foi para a sala de operações, estava ciente dos dois cenários?
Os médicos são muito minuciosos e criteriosos neste tipo de informação. O Dr. Santos Costa sempre disse: em princípio será apenas para retirar o tumor, e perceber se existiu passagem de algumas células cancerígenas para outras zonas do corpo, e possíveis metástases. Mas só depois de ver, de peito aberto, seria possível perceber a extensão da lesão e decidir. Preveniu-me para o caso de poder acordar sem peito.
Quando acordou, essa foi a primeira coisa que tentou perceber…
Foi. Toquei, olhei, perguntei. Ao meu lado estava o Dr. Santos Costa e perguntei: “Correu bem?”. “Afirmativo”, foi a resposta, e “descanse”. Às quatro pessoas que estavam comigo fiz a mesma pergunta. Era para acreditar completamente! Como se me beliscasse. Queria confirmações, confirmações. Queria que não houvesse tempos passados entre a entrada e a saída das pessoas, para que não tivessem tempo de combinar respostas entre si.
Tinha medo que lhe ocultassem coisas?
Tinha. E pedi desde o início que não me ocultassem nada.
Quando foi fazer a operação, não tinha ainda tornado pública a sua doença. Foi uma grande preocupação o facto de outros saberem da sua doença, descobrirem o que se passava consigo?
Nesse momento só queria que me deixassem me paz. Não queria ver ninguém. Não conhecia ninguém na Clínica de Santo António, mas sempre me senti muito confortável e resguardada. Quentinha. Havia um carinho muito grande, e sei que o têm para com todos os doentes.
Pediu-lhes que tivessem em consideração o facto de ser uma figura pública?
Nunca pedi. Foi bom não ter que pedir: “Por favor, não digam a ninguém”, não estar preocupada com a privacidade.
O que é que a fez emitir um comunicado, um mês e meio depois da operação? Parecia que estava na iminência de ser tornado público, e que preferiu antecipar-se.
Estava. Fui alertada; vários directores de revistas fizeram-me chegar a mensagem: já sabiam da notícia e só precisavam da minha confirmação. “Antes que alguém torne público à sua maneira, vou torná-lo à minha. Só eu sei a realidade dos factos e isto pode ser difundido de forma errada”. Só a nós assiste o direito de revelar o nosso estado de saúde. O comunicado foi a maneira mais acertada de o fazer.
Quem é que o escreveu?
Sandra Faria. Nem precisei de lhe pedir. Ela é uma pessoa muito importante na minha vida. Percebeu que eu não estava em condições de escrever o que quer que fosse.
Como é que foi ver-se na capa de todos os jornais e revistas com aquela notícia?
Pois… É o constatar da situação, uma vez mais. Uma coisa é estar escrito, já ter saído da nossa caixa de email; mas ainda não sabem seis milhões de pessoas. A partir do momento em que está exposto na capa de um jornal ou revista, é como estar um pouco despida. É a nossa intimidade. Também porque, apesar de estar acompanhada, familiarmente, clinicamente, é um processo muito solitário. De repente aquilo deixa de fazer parte do núcleo duro e passa a ser do domínio comum. É invasivo, e incomodou-me um pouco. Mas era uma forma de me poupar.
Viu os jornais e as revistas?
Vi no dia seguinte. Mas nesse dia, à uma da manhã, recordo-me de ver o programa com as primeiras páginas na SIC Notícias. E foi um choque. “Amanhã toda a gente vai ler isto…”.
O que quer isso dizer? Amanhã as pessoas vão olhar para mim de maneira diferente? Amanhã vão saber da minha vulnerabilidade?
Nem pensei nisso. Só me senti exposta e vulnerável. Só me apetecia ficar resguardada, em casa.
A Caras tinha uma caixa de mensagens com milhares de comentários de pessoas. Lia?
Lia, leio, e deixei lá a minha mensagem de agradecimento a todos. É importante saber que há pessoas a passar pelo mesmo. Há uma proximidade grande. Mas não sou do género de partilhar tristezas. Eu nem queria falar sobre isto. “Eu não quero falar sobre, eu já tenho de viver com”.
Era uma espécie de recusa?
Acho que sim. Não dar à doença mais espaço do que aquele que ela conseguiu conquistar na minha vida. Queria gastar os meus minutos a falar de outras coisas. É uma luta desigual: são forças diferentes, somos apanhados desprevenidos, e não temos como prevenir.
Já tinha feito alguma mamografia?
Já. Andava sempre em cima. Foi-me dito por um médico que mais tarde iria ter cancro da mama. Aos 40 anos, aos 50. Preferia transpor a experiência para daqui a 20 anos – daqui a 20 anos a medicina estará mais avançada, existirão medicamentos… Nas sessões de quimioterapia, fiz questão em ter por perto o enfermeiro Reis, que desdramatizava aquela situação. Estamos sentadas numa poltrona a receber tratamento e temos um técnico que diz: “A pirâmide inverteu-se. Antigamente, os tratamentos de quimioterapia tinham uma taxa de sucesso ínfima. Hoje em dia é ao contrário”.
Cerca de 99,8% das mulheres cujo cancro da mama é detectado muito precocemente conseguem salvar-se.
Ouvi falar de outra estatística: 78%. Mas a primeira conotação é ainda a morte. Depois adaptamo-nos, acreditamos no tratamento, percebemos que a situação não é tão dramática.
Quer dizer que só achou que ia morrer no início da doença?
Achei que ia morrer. E não percebia porque é que tinha de ser já. Quando ainda tinha tanta coisa para fazer. Eu tinha tido uma filha há dois meses, devia estar com uma depressão pós-parto! E estava a ser atacada numa outra frente. “Tenho de reagir, tenho dois filhos pequenos, quero assistir ao crescimento deles, quero assistir à minha velhice”.
Isso transformou-se no motor.
Sempre se ouviu dizer que o optimismo é meio caminho andado para a cura. Não sei… A cura acontece porque os tratamentos acontecem, porque reagimos bem aos medicamentos. Mas tinha o motor em casa: os meus filhos. Eles sem saberem… Um com três anos, a outra com, agora, dez meses.
O seu filho viu-a a cortar o cabelo. Que é que lhe explicou?
Disse que queria mudar de penteado e que queria ficar como na fotografia em que estava de cabelo rapado (da novela). “Gostas? Deixas a mamã cortar assim o cabelo?”. Inspirei-me na forma fantástica do filme A Vida é Bela, que retrata a Segunda Guerra como se fosse um jogo. Pensei que era a maneira mais fácil de transmitir ao meu filho esta coisa. Não queria passar-lhe maus pensamentos, não queria estar a chorar.
Nunca lhe disse: “A mãe está doente”?
Nunca. Penso que nunca se apercebeu disso. Claro que os dias a seguir à quimioterapia eram menos simpáticos… E quando o Santiago chegava da escola via-me de roupa de trazer por casa ou de pijama, com um ar mais abatido, e perguntava-me o que é que eu tinha. Rapidamente, aquilo dava-me ir buscar forças, God knows where, para ter um sorriso nos lábios, para brincar com ele, para reagir.
Era normal estar com roupa de casa e de pijama? Muitas mulheres continuam a arranjar-se.
Sempre fiz isso. Apanhou-me de pijama duas vezes, nos dias mais difíceis. Foram dois dias em nove meses, uma hora ou duas. A minha disposição para a brincadeira aparecia – não sei como. Durante este tempo fiz os possíveis para estar bem comigo mesma. Arranjava-me, maquilhava-me para estar em casa, maquilhava-me para dormir.
Para dormir?
Porque entretanto deixamos de ter sobrancelhas, pestanas, e é estranho vermo-nos sem esses pelos com que vivemos a vida toda. Eu não queria acordar assim! E sempre que me levantasse a meio da noite para ir a casa de banho, não tinha de me confrontar no espelho com aquela imagem.
O mais duro era olhar-se ao espelho ou saber que o seu marido, ali ao lado, a via naquele estado?
Também. Mas era mais para mim. Se eu gostasse, ele ia gostar de certeza.
O que é que mudou no seu corpo?
É um tempo longo em que existe uma inércia quase total. E tomamos uma quantidade bruta de medicamentos, que não desaparecem, ficam cá. Fui alertada para isso: há pessoas que emagrecem muito, e há pessoas que incham, incham. Não houve mudanças muito significativas, mas notei, sim, que o meu corpo não estava como antes.
Tocava o peito? Quando punha creme, por exemplo.
Há zonas em que nem conseguimos tocar, porque o corpo está dorido. Ainda é visível esta veia [estende o braço]… Está negra porque está queimada, da quimioterapia. Agora já consigo esticar o braço. Com o tempo, o corpo regenera, a actividade física volta a ser possível. Recorri à ajuda do Dr. Humberto Barbosa, da Clínica do Tempo para o pós-tratamento, com o aval clínico do meu médico. Aumentei o consumo de vegetais, passei a odiar beterraba, (que faz muitíssimo bem às pessoas que fazem tratamento oncológico). Felizmente consegui sempre alimentar-me e obrigava-me a comer. Era a única arma ao meu alcance: comer, dormir, para me reabilitar e ajudar os químicos a trabalhar.
Sentiu falta de uma vida normal?
Sim. No meu caso, era impossível estar a trabalhar 12 horas por dia num estúdio de gravação fazendo este tipo de tratamento. Ocupei-me com outras coisas: ser mãe, pesquisar peças de teatro para fazer, ver filmes, ler. O que mais fiz foi estar com os meus filhos.
Vive enquanto actriz dos seus afectos, mas também da sua beleza.
Por mais que não queiramos admitir, passa por aí.
E tinha o rótulo da bomba sexy. Isso não tornou tudo mais difícil?
Cheguei a pensar que depois desta situação se tornar pública, a ideia da mulher bonita, sexy, apelativa, nunca mais voltaria... Temos a ideia que a mulher bela e sexy é perfeita; portanto, não tem doenças. Aos olhos de algumas pessoas ia deixar de ser a mulher perfeita. Mas também nunca defendi a ideia da perfeição. Os meus exemplos não são pessoas politicamente correctas, são pessoas.
Vai custar-lhe não encarnar essa mulher sexy que era até agora?
Se fosse há dez anos, oito anos, talvez fosse uma preocupação. Neste momento não. Pensei nisso, mas a prioridade era sentir-se bem, para mim e para a pessoa que está ao meu lado.
A doença é o último tabu. Até há pouco tempo, as mulheres deixavam de ser sexys quando passavam à categoria das mães; agora, é quando deixam de ser saudáveis.
Exactamente.
Para esse sentimento contribuiu o facto de não ter sido mastectomizada?
Sabe que vi mulheres que tinham feito mastectomia radical e dupla e que têm peitos muito bonitos.
Quando reapareceu em público, na gala da TVI, usou um vestido cai-cai. Porque é que quis vestir um vestido que chamava a atenção para o seu peito?
Foi propositado. E tirar o papel do peito, também. No fundo, estou contente por ter os dois peitos. Mas se não os tivesse, acho que estaria bem e feliz na mesma. Hoje em dia é possível fazer reconstrução mamária num curto espaço de tempo, e perfeita.
Toca sem problema o peito doente?
Sim. Já me passou a fase de olhar e pensar que se passou ali uma coisa aparentemente não muito grave, mas que podia causar-me a morte.
Ia ao supermercado, andava na rua durante este período?
Fiz sempre isso, excepto nos dois primeiros meses após [a notícia] ter sido tornada pública. Evitei ao máximo andar na rua e restringi-me aos sítios onde me sentia segura.
Optou por usar peruca. Porquê?
Usei peruca desde o momento em que rapei o cabelo, porque o Santiago não gostou de ver a mamã assim; pediu-me para colar o cabelo. Arranjei essa solução rápida e eficaz. Por ele.
Se vai na rua e vê uma mulher de lenço…
Chama-me a atenção. No trabalho que tinha feito [na novela] tinha andado de lenço, de cabeça rapada. Mas as pessoas reconhecem-se muito na rua e há uma cumplicidade de segundos... Basta um sorriso, um olhar.
Na sala de espera, na clínica, as pessoas olhavam-na? Para elas era a Fernanda Serrano ou era mais uma mulher que estava a enfrentar o cancro da mama?
De repente, as pessoas perguntam-se o que é que a Fernanda Serranos está a fazer na sala de quimioterapia... Fui protegida. Quando a notícia ainda não era do domínio público, não fazia os tratamentos de quimioterapia na mesma sala que as outras pessoas. Mas claro que me cruzava com pessoas dentro da clínica. Há um discurso do qual não quero fazer parte, com perguntas, a comparar a situação…
Não queria ser olhada como uma coitadinha.
Ali, estamos todas a passar pelo menos. Mas cá fora, “coitada!”. Quero que me vejam como uma pessoa feliz, que ultrapassou um obstáculo.
Como é que acha que as pessoas a olham?
Não penso muito nisso. O feedback que tenho tido é das pessoas mais próximas, que falam com admiração e orgulho. “Se estivesse no teu lugar não sei se teria coragem para fazer o que tu fizeste”. Eu nem considero isto coragem. É só uma forma de lidar com o assunto. É uma defesa, e não coragem.
Como actriz, trabalha com os seus sentimentos. Agora, o mapa afectivo muda. Que papéis vai fazer numa próxima novela? A coitadinha cola-a à sua realidade. Uma megera não será muito convincente…
Vai apetecer-me mais fazer uma vilã ou uma bem disposta. Agora não me apetece fazer uma pessoa que sofre muito. Serão outros dispositivos, outros interruptores, que não conheço, que ainda não domino. Há coisas que agora me fazem chorar e que antes não faziam.
Chorou muito?
Muito, muito. Optava por chorar sozinha.
Não chorava à frente do seu marido ou dos seus pais?
Eu queria passar-lhes a mensagem que estava bem, que era forte. Guardava esses momentos para mim – podiam acontecer de forma descontrolada… Tive momentos, em que queria tanto chorar, tanto, tanto, tanto. “Tenho que chorar agora. Já. Muito”. Agarrava no meu carro e saía para chorar. Entretanto, quando chegava a um local onde podia chorar à vontade, já não conseguia chorar! E ria-me. Rio-me com as minhas dificuldades. Que é que estou aqui a fazer? Fazemos coisas tão estranhas… Isto é uma aprendizagem total, até de nós próprios.
Porque é que lhe é tão difícil chorar à frente de outros?
Quis sempre protegê-los. Quando amamos muito as pessoas, não queremos que sofram.
No fundo, continuava a tomar conta da situação e dos outros.
Pois. Na realidade estava a tomar conta.
E eles aceitaram?
Se se aperceberam, aceitaram. Eles não sabem disto.
Passou a ser uma referência. Houve mulheres que seguiram o caso da Kylie Minogue, houve pessoas que seguiram o caso da Fernanda Serrano. A dada altura, a Fernanda já não é a Fernanda, é a personagem pública que as pessoas seguem e cujo exemplo de coragem precisam de ter. Como é que fez este desdobramento?
Nem sei. Acho que foi uma decisão que tomei logo no início quando percebi que não ia conseguir manter a situação em privado. É uma opção pessoal, mas eu, não conseguindo omitir, também não ia andar a fugir, a esconder. Decidi tornar público. Procurei casos de figuras públicas – como a actriz brasileira Patrícia Pilar – e fiz aquilo que outros fizeram comigo. Também fui em busca. Quero que o meu caso não seja falado como uma coisa poucochinha, “coitada, teve isto”. Quero que sirva de exemplo como mais um caso feliz.
O meu ginecologista diz que o número de mulheres de 30 anos que foi fazer apalpação e pediu mamografias depois de o seu caso ter sido tornado público subiu exponencialmente.
É muito bom saber isso. Também tive esse feedback aquando do meu outro trabalho. Uma mulher foi ter comigo e disse-me que no dia em que fiz apalpação e descobri o nódulo no peito (na novela), ela fez e descobriu também! Quinze dias depois estava a ser operada. Disse-me isto no supermercado, e tinha o cabelo mais curto do que o meu. Eu estava grávida do meu primeiro filho. “Graças à Fernanda, graças ao seu trabalho, descobri o que tinha. Fui motivada pelo seu papel. Devo a minha vida àquele momento”. Foi tão forte… Chorei. Não devia tê-lo feito, que quem estava a passar pela situação era a outra pessoa, não eu. Se me dissessem isto agora… Foi bom ter tornado isto público, foi bom falar de tratamento e de cura. É bom saber que há uma luz ao fundo do túnel. Para que daqui a uns anos, a primeira conotação da palavra não seja aquela que eu lhe dei: cancro igual a morte.
Publicada originalmente na Revista Pública, em Novembro de 2008