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Anabela Mota Ribeiro

João Miguel Tavares

19.11.14

João Miguel Tavares dispara frases de efeito garantido como “o Ricardo Salgado devia ter ido mais vezes pôr o lixo à rua”. Diz que é preciso ter respeito pelo bife e que merecia ser condecorado no 10 de Junho por causa dos processos que teve de Alberto João Jardim e José Sócrates. Com ironia. Com um tom pop e humorado que é o da sua geração.

É um homem de direita ma non troppo. A esquerda frequentemente gosta dele. Escreve para a última página do Público duas vezes por semana, integra o “Governo Sombra” na TSF e TVI, alimenta o blog Pais de Quatro. (Sim, tem quatro filhos e está sempre a falar disso.) Jornalista, colunista, é uma das três pessoas optimistas sobre o país e a Humanidade.

 

 

De que falamos quando falamos de crise? Falamos de mercados, falamos de desesperança, falamos de Europa?

Sou demasiado novo para ter desesperança. A crise, para a nossa geração, foi importante porque nunca tínhamos passado por isto. Não havia memória nossa, física, disto. Nos anos 80 não foi uma coisa tão impactante como agora. Pela primeira vez temos a noção de que os nossos filhos correm o risco de vir a viver pior do que nós. Era uma coisa inimaginável até há pouco tempo.

 

Esse pior significa, sobretudo, viver com menos dinheiro?

Com menos dinheiro e com menos oportunidades de trabalho.

 

Oportunidades é diferente de dinheiro. Quando falei de desesperança estava a pensar num quadro mais aberto, onde entram as oportunidades.

Não me identifico com essa desesperança. Dizem os chineses que convém não perder a oportunidade que uma crise nos dá. Há um lado muito doloroso, a desgraça no presente. Mas as crises permitem corrigir erros que de outra forma jamais seriam corrigidos. A partir delas podemos esperar que algumas coisas funcionem melhor, que as instituições funcionem melhor. Evidentemente, se fizer um discurso a apontar as virtudes desta crise, é muito fácil chamarem-me insensível. Alguém chega perto e diz: “Mas como é que é isso, se há pessoas a sofrer com fome no meio da rua?”.

 

Aponte lá algumas virtudes.

Podemos pegar num caso polémico como o BES e a maneira como ele foi tratado.

 

Podia prever esta evolução?

Uma derrocada desta dimensão, eu não previa. Mas o mais preocupante não é eu não ter previsto: é Carlos Costa e Vítor Bento não o terem previsto. O actual sistema financeiro é de tal modo complexo, e há um tal desequilíbrio de informação e um tal défice de transparência, que mesmo quem é suposto andar a passar as contas de um grupo a pente fino só vê chegar a pancada quando já está com o nariz no chão.

 

As notícias mais recentes põem em causa a ideia de que só se vê chegar a pancada quando se está com o nariz no chão. O Público de ontem dizia que, tudo somado, a exposição do Estado ao BES superou os 10 000 milhões de euros. Como é que o Estado, que deu o aval a diferentes empréstimos e operações, não sabia das dificuldades do banco?

A informação vai surgindo dia a dia. Estamos no meio de uma nuvem de fumo e não é possível ainda perceber o que aconteceu. Pode ser que cheguemos à conclusão de que Carlos Costa devia ter corrido mais cedo com Ricardo Salgado. Mas convém ter memória. Há um mês estávamos espantados e a dizer que o BdeP enfrentava com energia o problema. Devia ter tido mais? É possível. Não tenho dúvidas de que houve falhas de regulação. Mas não invertamos as coisas e não transformemos o polícia em ladrão. Desta vez, isto bateu fundo a muita gente com dinheiro. Nem toda a gente se conseguiu por ao fresco. É uma diferença radical, que valorizo muito.

 

O Governo recusou usar a palavra nacionalização. Vozes críticas dizem que ela não é senão uma nacionalização encapotada. É?

Não. Acho essa leitura completamente injusta, e tenho defendido imenso a solução do Fundo de Resolução. Claro que nos calhou ser cobaias de um sistema que só agora está a ser implementado na Europa, e que é natural ter falhas. Mas há um mundo de diferenças – políticas, económicas, morais – entre a solução BES e a solução BPN e acho intelectualmente desonesto isso não ser sublinhado pelos comentadores. Esta é a primeira verdadeira alternativa à terrível máxima “too big to fail”, colocando na primeira linha de responsabilidade os accionistas e na última linha os contribuintes. O que se pretende, com o Fundo de Resolução, é que o sistema financeiro se auto-regule mais eficazmente, na medida em que se um banco falha, todos os bancos pagam.

 

E é justo?

Parece-me justíssimo que assim seja, e significa que a Europa aprendeu alguma coisa com a crise que se abateu sobre nós.

 

E acredita que os bancos, que recorreram a linhas de apoio tão recentemente, poderão suportar a factura no caso de a venda do Novo Banco não render o previsto? E pode render o previsto? Ou seja, não há um excessivo optimismo nesta solução?

Olhando para as notícias, concordo que pode haver um excessivo optimismo. Toda a gente falhou, houve inúmeros erros, é inacreditável que tenha sido Marques Mendes a dar as notícias... Mas mesmo que a solução não corra bem, é suposto que a diferença seja paga, não pelo contribuinte, mas pelo sistema bancário. É isso que quero sublinhar: que a solução encontrada é justa.

 

Nas suas crónicas mais recentes defendeu que o modelo encontrado representa um novo modo de fazer política. Deduzo que não concorde com os que pensam que os casos BES e BPN se parecem.

Não, os casos não se parecem, e é contra este tipo de equivalências que eu me indigno. Aquilo que vejo à minha volta são as queixas de sempre. Acho óptimo que a opinião pública seja exigente, mas não podemos pôr o queixume em piloto-automático. Muitas vezes, parecemo-nos demasiado com os velhos dos Marretas: sempre a mandar bocas do camarote, seja o que for que aconteça em palco. Ora, é trágico que isto tenha acontecido, mas tendo acontecido, ninguém tem melhor alternativa do que o Fundo de Resolução – e o Fundo de Resolução está a anos-luz da solução BPN. Eu adoro o papel do “watch-dog”, mas isso não significa rosnar e morder em tudo o que mexe, sem qualquer espécie de critério.  

 

Os velhos dos marretas – nós todos, de uma maneira geral, e de diferentes maneiras – procuram bodes expiatórios, alvos fáceis, responsáveis. Quem são? 

Neste caso o alvo fácil não é nenhum bode expiatório: o primeiro responsável é Ricardo Salgado e os administradores do BES. Colocar demasiada atenção em Carlos Costa, quando Carlos Costa apesar de tudo mostrou um músculo que nem após ver a sequência completa dos Rockys e dos Rambos Vítor Constâncio algum dia sonhou ter, é uma estupidez. Agora, a justiça tem de ser rápida a actuar, e há pessoas que têm de ser presas.

 

Contam-se pelos dedos os autores de crimes de colarinho branco que vão para a cadeia.

Se depois disto não houver gente a entrar na cadeia, ninguém algum dia acreditará que o crime não compensa. Mais vale inscrever de uma vez por todas no Código Penal uma alínea que diz que é proibido assaltar bancos com pistolas e caçadeiras mas é permitido assaltar bancos com assinaturas e offshores. É preciso dar o passo que falta, e que cabe à justiça – é preciso prender os responsáveis por este estratosférico buraco. Senão há uma ferida moral que continuará aberta.

 

No início deste excurso dizia que uma das virtudes da crise é obrigar a um fazer de novo, a um melhoramento do funcionamento das instituições.

É claro que a natureza das pessoas não muda – mas o aperfeiçoamento das instituições torna as sociedades e os países mais civilizados. Da mesma forma que, depois do escândalo da fruta, me parece que hoje em dia é mais difícil comprar árbitros, espero que depois do escândalo do BES passa a ser mais difícil enganar os reguladores e mandar bancos abaixo.

 

Retomemos o tema da crise. Vivemos acima das nossas possibilidades?, fomos estimulados a endividar-nos?

Escrevi um livro infantil, A Crise Explicada às Crianças, que goza com essa narrativa. Vivemos claramente acima das nossas possibilidades, e fomos estimulados a endividarmo-nos.

 

E por quem?

Há separações a fazer. Uma coisa é apontarmos o dedo às pessoas que compraram as suas casas como se tivessem feito um esforço irracional.

 

As taxas de juro eram baixíssimas, o dinheiro era muito barato.

Se se alugasse uma casa ficava-se a pagar mais. O discurso [acusatório] sobre a pessoa comum é profundamente injusto. Outra coisa são as pessoas de responsabilidade, os políticos. Esses estão lá para saber o que é que está a acontecer, antecipar problemas. Não vimos essas pessoas a agir de maneira correcta. Quando fala de Portugal como um todo não consigo atribuir a culpa a entidades malévolas exteriores. Ainda que estejam a empurrar a colher, somos nós que abrimos a boca. Em última análise, comemos demais. Não fazia sentido nenhum fazer três auto-estradas paralelas para ir do ponto A ao ponto B. Foi uma loucura que se sabia que ia acabar mal.

 

Disse que não faz uma leitura positiva deste Governo.

Podemos ter perdido uma boa oportunidade para mudar mais.

 

Quais foram os grandes falhanços?

Não houve uma reforma do país. Não pararam para repensar o sistema político. “Faz sentido que os nossos deputados sejam eleitos assim? Vamos pensar como é que o país pode ficar mais democrático para aproximar o poder das pessoas.” Tentaram fazer reformas autárquicas que foram uma comédia. Conseguiu-se acabar com umas freguesias. As câmaras municipais continuam iguais. Pequenas coisas simbólicas: mudar a RTP; passaram-se três anos e a RTP está na mesma. Quando se vêem as fundações sente-se a inércia brutal do sistema. Também acho que as pessoas chegam mal preparadas ao Governo. É o velho problema das nossas elites.

 

A qualidade das elites é um dos problemas centrais do país? Como é a dívida ou a falta de crescimento.

Não se conseguem separar uns dos outros. Deus Nosso Senhor, quando fez os países perguntou: “Queres ter sol e bom tempo ou queres ser bem governado?”. Quando se olha para o planeta, não se consegue ter sol e ser bem governado [risos].

 

Vai introduzir a conversa do norte-sul, a ética protestante do trabalho versus o laxismo dos católicos do sul?

Não somos preguiçosos. Não veja isto só numa perspectiva negativa. A cunha – tema ao qual sou muito sensível, tem que se combater o amiguismo nacional – não tem apenas um lado negativo. Gosto de dar o exemplo dos retornados. A minha mulher e a família dela veio de Moçambique. Os franceses ainda hoje têm problemas com as pessoas que vieram da Argélia. Enfiaram-nas em guetos. Nós tivemos quase um milhão de pessoas a chegar em menos de um ano e conseguimos absorvê-las e integrá-las na sociedade.

 

Muitos foram integrados na função pública. E de um modo geral os retornados eram qualificados.

Os meus sogros são professores. O que se conseguiu é admirável e conseguiu-se pela simples razão de que temos uns laços sociais extraordinários. As pessoas tinham cá a família que sentia genuína responsabilidade. “Estas pessoas são nossas e vamos tomar conta dela”. Isto não existiria na Noruega.

 

Somos uma sociedade “porreira, pá”.

Isso é o lado bom, temos traços de sociabilidade gigantes.

 

Conhece alguém que se queira reformar e ir viver para a Alemanha?

Não. Para Portugal, sim. Quando estou em Portugal, muitas vezes desejo ser alemão, mas vou à Alemanha [faz cara de rejeição]… Eu quero passar com o semáforo dos peões no vermelho [riso].

 

Gosta da transgressão de atravessar no vermelho.

Temos também uma desconfiança, que nos está no sangue, em relação à instituição, ao Estado. Por isso é que as pessoas fogem aos impostos. O dramatismo é como encontrar o equilíbrio. Como ser mais produtivo sem ser alemão. Como aproveitar a praia e o sol sem ser calão. Tento praticá-lo na minha vida.

 

Fazemos o diagnóstico. Contudo, ninguém vira a mesa e diz: “Vamos mudar isto tudo”.

Mas está a mudar.

 

Acha?

A questão é como mudar isto sem levar com uma crise em cima e sem a Troika a entrar pela Portela adentro. É preciso ter uma cenoura à frente do nariz. Senão, não mudamos. Tínhamos a cenoura da CEE, a cenoura do Euro. Como é que se explica que as pessoas vão lá para fora e sejam fabulosos trabalhadores? Porque precisaram e mudaram.

 

Outra resposta possível: lá fora há lideranças extraordinárias, organizações extraordinárias que nos fazem funcionar de outra maneira.

Sim. Pode ser uma questão de défice educativo. O problema é que as elites acabam por ser o reflexo do povo. E há a ciclotimia muito irritante do português, que ou é bestial ou é besta.

 

Façamos um exercício de rememoração pensando no que mudou para melhor. É o exemplo acabado da geração de 70 que cresceu em democracia. Como é que era a sua infância? Como é que é a infância dos seus filhos?

Um exemplo óptimo e pouco habitual: começam a existir pessoas com o meu background que chegam a colunistas e escrevem nos jornais. Nota-se muito esse background. Nunca se ultrapassa, a infância, a maneira como fomos educados, as oportunidades que tivemos.

 

Portugal era mais estratificado socialmente, é isso que está a dizer?

Era mais difícil chegar cá a cima. Embora eu bata tantas vezes no funcionalismo público, sou filho de um Estado Social. Sou filho de dois funcionários públicos que completavam o 5º ano (actual 9º ano) que dava acesso a trabalhos de escritório. Os meus pais trabalhavam nas Finanças. Os pais deles teriam a 4ª classe. Eles deram-me a formação para chegar à faculdade. Percebemos o que é que o país nos deu, temos um desejo acrescido de que as coisas mudem, um desejo igualitário.

 

A ascensão faz-se por via da educação. E a integração, a mobilidade social, é plena?

Podemos tentar ler livros como a elite lisboeta, mas nunca nos sentimos realmente parte da elite lisboeta. Podemos fazer um esforço para manipular os braços da melhor forma, mas há sempre uma altura em que se fala alto demais e se põe os cotovelos em cima da mesa. É o upbringing. Marca uma distância. Há quase um conflito de classe. Tenho uma certa alergia a esse lado mais socialite da própria cultura.

Os meus filhos já têm pais licenciados. Têm um pai que é jornalista, têm uma mãe que é médica.

 

No início da entrevista falou da possibilidade de os seus filhos viverem pior, no futuro. Mesmo que percam oportunidades, o que é que não perdem? O acesso à educação?

Sim. Tento ao máximo incutir nos miúdos a ideia de que é preciso trabalhar para ser alguém na vida. Não os quero betinhos. Às vezes olho para a minha filha de dez anos e vejo que está a “abetalhar” [risos]. Nos anos 80 estávamos a ouvir o We Are The World [cantarola], tínhamos a fome em África. Não havia telejornal sem crianças com moscas a passar por cima da cara. Essa memória para mim é tão viva que me sinto ofendido quando as pessoas não valorizam o que têm. Lembrem-se do que era Portugal e o mundo nos anos 80. As coisas de facto melhoraram. Essas imagens faziam com que nos dissessem: “Comes tudo, comes tudo o que tens no prato”. E tem-se um respeito pelo bife.

 

Respeito pelo bife?

O respeito pelo bife e pela batata frita vai-se perdendo a partir do momento em que ele abunda. Essa educação (é uma dimensão muito pessoal) é algo estruturante que tento passar aos meus filhos. “Não olhes para aquilo que te falta, olha e sê grato pelo que tens.” Sou da geração que comprava os livros no Círculo de Leitores e nas Selecções do Reader’s Digest. Saíam as obras completas do Eça de Queirós e andava-se ali a pagar mês a mês, à medida que os volumes chegavam. Tenho muito respeito por isso.

 

O que é que viu mal na crise de 2008? Passam agora seis anos.

Está a falar da internacional ou da nacional? Na nacional, não percebemos que existiu uma crise em 2008. E quando chegámos às eleições de 2009, aumentámos os funcionários públicos 2,5%.

 

Isso é o seu ódio a Sócrates a falar.

Sim. O meu ódio a Sócrates é muito profundo. (Até hoje só tive dois processos, um de José Sócrates e outro de Alberto João Jardim. É uma coisa de que me honro muito e pela qual já devia ter sido condecorado no 10 de Junho [risos].) Independentemente de todas as outras coisas, do amiguismo, aquelas pessoas falharam completamente na sua função. Não viram, não perceberam. Isso não é desculpável. Gostava que tivéssemos na política o rigor do futebol, o rigor dos resultados. A equipa não joga nada, não ganha a ninguém? Rua, venha outro. Devíamos ter a mesma exigência do fanático [da bola] na política. Aquele senhor [Sócrates] foi goleado. Até se pode dizer que é um treinador com muito talento, como o Filipão, mas levou sete da Alemanha. E nós levámos sete da Alemanha.

 

A Alemanha incentivou-nos a gastar, até à famosa frase de Sócrates: “O mundo mudou”. Basta ler o livro Os Resgatados, de Hugo Filipe Coelho e David Dinis (que não pode ser considerado uma pessoa de esquerda ou socratista); vem tudo explicadinho. A Alemanha, que nos deu sete, disse: “Continuem”.

Houve políticas keynesianas e os alemães queriam continuar a vender cá os Volkswagen.

 

Para salvar os seus bancos. Ficou impressionado com a entrevista do ex-conselheiro de Durão Barroso na Comissão, Philippe Legrain, que disse que o resgate serviu para salvar os bancos alemães? Como é que leu aquilo?

E se fizermos um esforço para estar nos pés das outras pessoas? Os alemães fizeram isto para proteger os seus bancos, e então? Se tivéssemos oportunidade, não fazíamos as mesmas coisas?

 

No mínimo, não venham com um discurso moralista.

O discurso da Merkel, dos calões dos gregos?

 

Dos gregos e dos portugueses, que trabalham pouco.

Com certeza que não. Não estou a defender a Sra. Merkel. Mas não podemos atribuir as culpas aos outros. Não gosto que Portugal aja como age o [meu filho] Gui que tem seis anos – “Ela bateu-me”. É uma espécie de apoucamento. As pessoas criticam o Portas por dizer que não temos a independência nacional, que somos um protectorado. E a atitude de dizer: “Eles é que me obrigaram a consumir e a endividar-me...”? É ridículo, é ridículo como atitude.

 

Já disse que fomos nós que abrimos a boca.

Recuso colocar-me num papel de mentecapto. Não havia ninguém a fazer contas? O Medina Carreira anda há 20 anos a dizer que isto é insustentável. É uma atitude improdutiva dizer que os alemães tomaram conta do interesse deles. Brilhante! O que não é normal é os países não tomaram conta dos seus interesses. Muito imposto alemão foi parar às nossas auto-estradas. É a aldeia global, as coisas interagem.

Mesmo assim ganhámos mais do que perdemos. Por isso é que ninguém quer sair da União Europeia. Só três ou quatro malucos é que querem sair do Euro. As pessoas reconhecem que a Europa lhes deu muita coisa boa. Claro, eu sou alentejano..., vi que os agricultores alentejanos, em vez de estarem preocupados em melhorar as suas herdades, compraram jipes.

 

Voltando à questão: o que é que viu mal na crise de 2008?

Chegámos a um ponto – e estou completamente alinhado com a esquerda – de total desregulação do capitalismo. Nos anos 80, a Sra. Thatcher em Inglaterra, o Sr. Reagan nos Estados Unidos (e depois o próprio Clinton) começaram a facilitar. O mercado, só por si, resolvia as coisas. Não sou o direitista que acha que o mercado resolve tudo. Convém ter um Estado forte para regular. Não é para nos salvar nem para dizer o que é que temos que fazer com as nossas vidas.

Chegámos a um ponto, com uma tal complexidade de produtos financeiros, que ninguém percebe nada daquilo. Deixámos os senhores divertirem-se e foi um regabofe. Há uma culpa clara da desregulação do mercado e de um papel que o Estado deixou de fazer. Chegados aí, as coisas tinham que começar a mudar.

 

Mudaram?

Diria que não mudaram suficientemente. Nos Estados Unidos, não. Na Europa, foi-se fazendo alguma coisa. São as pequenas alterações de que falávamos e que me fazem ser optimista.

Em Portugal não teve directamente a ver com isto mas com o endividamento. De repente encontrámo-nos num país que tinha uns juros baixíssimos, que quando entrou no euro teve acesso a uma torneira interminável de dinheiro a juros baixos. O pessoal pirou. Desde aí até aqui, a dívida mais que duplicou.

 

Se o objectivo era corrigir o problema do endividamento, os números não são famosos depois de três anos de austeridade. A dívida aumentou. O país quase não cresce. A pergunta que muita gente, não só de esquerda, faz, é: valeu a pena, verdadeiramente?

A pergunta não faz sentido porque não havia alternativa. Provavelmente o programa não estava bem calibrado, foi feito à pressa. Não havia experiência de atacar uma crise destas num país sem moeda própria.

 

Essa é a grande diferença em relação às intervenções do FMI dos anos 70 e 80.

É a diferença radical. E esse é o grandioso problema com o Tribunal Constitucional. Temos uma Constituição que não está preparada para uma moeda única, que só nos deixa empobrecer pela inflação.

 

Acha que se deve mudar a Constituição?

Sim. Devemos repensar o regime. Não acho que [o problema] sejam os senhores do TC, a quem muitas vezes se aponta o dedo. Devia haver maior flexibilidade. Mas se fosse só para dizer sim aos diplomas que vêm do Governo, o TC não estava lá a fazer nada. O TC está a funcionar como contra-poder? É para isso que ele existe.

Se se vive num mundo onde não se pode inflacionar porque não se controla a moeda, a única maneira de cortar é cortar nos salários.

 

Há opções políticas diferentes. Por exemplo, taxar mais o IRC e menos o IRS.

E taxava as empresas nesta altura do campeonato, que é aquilo que pode trazer crescimento?

 

Mas elas têm crescido?

O sector exportador tem crescido. Como é que se pode dizer que se quer o crescimento e taxar o IRC? É impossível. São mais umas empresas a falir. Isso é o contrário do que tem que se fazer. Não sou economista, se tivesse as soluções para a pátria não estava aqui a dar entrevistas, estava em São Bento, podia ser ministro.

 

Já o desafiaram a ser político?

Não. Fui editor, fui director-adjunto, gosto muito de liderança. Mas há questões de liberdade. Ser deputado e ter disciplina de voto é uma coisa que não me cabe na cabeça. E defender imbecilidades. São precisos demasiados compromissos na vida política.

 

Cresceu imenso em termos de impacto mediático nos últimos anos. Com o blogue Pais de Quatro, com o Público, que o posicionou junto de uma audiência diferente daquela que tinha com a Time Out ou o Correio da manhã, de que foi colunista, por integrar o Governo Sombra (TSF e TVI). Que poder é que acha que tem?

Nenhum [riso].

 

Sabe que é não é verdade.

Escreve-se no Público, na última página, duas vezes por semana: tem um enorme impacto. Num texto perguntava de onde é que vinha o dinheiro da campanha do António Costa e ele escreveu-me uma carta a explicar. A não explicar, na verdade. Isso tem a ver com a própria projecção do jornal. Mas daí a dizer que tenho uma influência… Influência, em Portugal, tem o Marcelo [Rebelo de Sousa]. Também não tenho forma de aferir isso. Sou muito fechado em minha casa. Para se fazer bem o trabalho de colunista não se pode conhecer muita gente.

 

Porquê?

Tenho que preservar imenso a questão do almocinho. Recebem-se convites, mas não se pode almoçar com pessoas do Governo. Perde-se independência. Se for almoçar com Pedro Passos Coelho, há boas probabilidades de vir a gostar dele. E a próxima vez que escrever sobre Passos Coelho estou a vigiar os meus adjectivos. Acontece com facilidade. O meio é muito pequeno.

 

Qual é que foi o grande falhanço de Portugal nestes 40 anos?

O grande falhanço é atribuirmos aos outros as culpas pelos nossos erros. Não assumirmos a merda que fazemos. Como país, tem que se ser homenzinho. Andar sempre a apontar para fora é um grande falhanço. Tenho pena que acabe com essa pergunta...

 

Por falar de falhanço e por que é um optimista?

Vivemos numa cidade como Lisboa que é liderada por um homem de esquerda, o António Costa. Não podemos achar que está igual à de há dez anos. Lisboa melhorou incrivelmente. As pessoas passaram a andar de bicicleta, a correr junto ao rio, saem à noite, bebem um copo depois do emprego. Temos uma qualidade de vida tão maior. Mas ninguém fala nisto porque o país está em crise, é tudo uma desgraça. Parece que pomos umas palas nos olhos para só vermos as coisas más.

 

Como é que se faz o país assumir as suas responsabilidades?

O país está a ser obrigado a assumir as suas responsabilidades. Não tem feito outra coisa. A minha tristeza é as coisas não andarem suficientemente depressa. É mais difícil ser um político da treta e estar na Assembleia da República. Existe uma exigência superior. Gosto de acreditar que Portugal vai sair melhor daqui. Muito porque somos empurrados lá por fora, que nos diz: “Comportem-se”. Essa é a parte dolorosa.

Tenho muitas dúvidas na existência de Deus. Muitas, mesmo. Provavelmente Deus não existe. Assumo-me muitas vezes como um católico ateu.

 

(Essa frase é uma frase pop. A sua escrita é completamente pop. Parte do seu sucesso resulta, também, da maneira como faz a concatenação de elementos dispersos.

É muito da nossa geração. E a utilização do humor.) A questão religiosa e a ética individual: pusemos tudo em causa, e bem, mas deixámos de ir ao ginásio da consciência. Há uma vigilância dos nossos actos que a religião dá. A religião é inventada para controlar o animal humano. Está constantemente a dizer: “Pensas que és o maior?, não és, baixa a bolinha”. Esse “baixa a bolinha”, tem um lado terrível, muitas vezes de opressão, mas esse treino é necessário. É por aí que as pessoas podem fazer a diferença no dia-a-dia, na educação dos miúdos. Não somos o centro do mundo e precisamos de ouvir isso.

 

Fala dos seus filhos recorrentemente.

Não precisava de ter filhos para ser feliz. Internet banda larga e uma biblioteca, e deixem-me estar. Mas graças a uma mulher pela qual me apaixonei e com a qual tive filhos, estou constantemente a descentrar-me de mim. Ela está constantemente a dizer: “Vai pôr o lixo à rua”. E isso é mesmo muito importante. O Ricardo Salgado devia ter ido mais vezes pôr o lixo à rua [risos].

 

Quando terá sido a última vez que Ricardo Salgado pôs o lixo na rua?

Não sei. Mas é preciso. Somos pó.

 

São os chamados pés na terra.

Pés na terra e olhos no céu.

 

 

Publicado originalmente no Jornal de Negócios em 2014