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Anabela Mota Ribeiro

Nuno Markl

13.05.20

Uma entrevista é uma entrevista é uma banda desenhada/ uma fotonovela/ uma caderneta. É um tudo em um com Nuno Markl, a olhar para os melhores cromos do seu álbum. Entra o pai, entra o filho, entra a rádio, entram As Manhãs da Comercial, entra evidentemente o blazer branco do Miami Vice. Sempre houve vida em Markl. E há pathos e galinhas, o que pouca gente conhece.

Olhando bem para trás, não é tão estranho assim que ele tenha feito o percurso que tem vindo a fazer. A Nancy, por exemplo, já achava que ele ia fazer qualquer coisa nesta área. A do humor, a da comunicação. A Nancy era uma quase mãe no colégio. A “velha e boa” Nancy que o mimou muito e nunca demais. Mas durante anos, Nuno Markl deitou-se no chão do quarto a desenhar, em trip infantil, deitou-se (na cama?) do quarto a sonhar com uma vida mais integrada (apesar da penca e de manifestamente ser de outro planeta), em trip adolescente. Olhando bem para trás, e sobretudo depois de começar a fazer rádio, era de supor que o Markl ia ser o acabado cromo, a fazer render o facto de ser o acabado cromo. Não no sentido de ser mais um cromo da caderneta. No sentido da estranheza, da singularidade, do “que grande maluco me saíste” ou do “tudo acontece a este gajo”.

Há outro lado, menos cromo. Em metamorfose. Talvez em crise de meia idade. Nuno Mark nasceu em 1971. Nesta entrevista passa o trailer disso. (Foi Markl, como argumentista, que inventou a frase tornada famosa por Lauro Dérnio e interpretada por Herman José. Era tempo das Produções Fictícias.)

Esta não é uma entrevista como as outras. Vale a pena falar do modus operandi: primeiro, a entrevista. Depois, a ilustração. Com desenhos feitos por Markl propositadamente, fotografias à maneira (algumas encenadas), material antigo, fotografias que não envergonham muito retiradas do baú dos tesourinhos. Por fim, fez-se uma conjugação de peças do puzzle. (E aqui se acaba a toada engraçadinha da introdução.)

 

 

Quais são os cromos mais preciosos da sua caderneta?

A Ana [mulher] e o Pedro [filho] estão num cromo, mais as outras criaturas que compõem a família. A rádio está noutro. Planos separados. A televisão está algures, noutro cromo qualquer.

 

Comecemos pela primeira página. O persona Markl é muito original. Teve a noção de que compunha uma caderneta diferente das outras?

Era preciso que a dada altura tivesse pensado: “Sou mesmo singular”. Não foi o que aconteceu. Na adolescência senti isso no mau sentido. “Sou tão diferente do resto que estou tramado. Não vou conseguir sobreviver neste mundo”.

 

Em que é que se baseava essa estranheza que sentia?

No facto de me sentir inadaptado desde sempre. De não me conseguir integrar nos jogos de futebol. Achava que nunca ia conseguir falar com as miúdas, que era super acanhado. Não sabia sequer quais eram as ferramentas para “desacanhar” e sair da minha ostra. “Resta-me ficar aqui fechado no meu quarto”. Curiosamente a fazer coisas que depois tiveram eco na minha vida pública.

 

Como é que era esse quarto?

Precisava de ter imenso espaço no chão para estar deitado de barriga para baixo a desenhar. À medida que fui crescendo outras coisas tiveram que entrar no quarto. A rádio. Ouvia imensa rádio. O Rebéubéu Pardais ao Ninho do Herman [José], o Pão com Manteiga, o Noites Longas do FM Estéreo. Mas se alguém aparecesse e dissesse: “Neste quarto está tudo o que vais fazer. Vais acabar por desenhar coisas, nestes desenhos há humor”...

 

Gostava de fazer piadas?

Tinha a mania de misturar bonecos da televisão [com pessoas de carne e osso]. Estávamos na altura do PREC e misturava o [Álvaro] Cunhal e o [Mário] Soares com a Heidi.

 

Como é que fazia isso?

O meu pai era militante do PCP, a minha mãe era simpatizante do PCP. Tudo era acompanhado com intensidade. Eu andava um bocado aos papéis. O que eu gostava era de ver o Vickie na televisão. E a Heidi. Não havia muito para fazer.

 

Entretinha-se com a sua irmã?

Houve uma altura em que não tinha irmã. Estive oito anos como filho único e via muita televisão. E tudo aquilo se misturava na minha cabeça.

 

O Cunhal e a Heidi.

Sim. E o Mickey e o Soares. Criava as minhas próprias revistas em casa. Havia magníficas aventuras envolvendo o Cunhal e o Donald em busca da Heidi [risos]. O meu pai foi uma influência. A minha mãe também, tem sentido de humor, mas o meu pai desenhava bastante bem.

 

Era de História de Arte.

Sim. O Mário Soares que o meu pai desenhava era fantástico. Olhávamos e dizíamos que era o Mário Soares. O formato da cara: era uma pêra com duas partes de baixo. O meu desenho do Mário Soares era baseado no que o meu pai fazia. O Eanes também tinha uma boa pinta.

 

E o núcleo da aventura, era qual?

Coisas elementares. Naquela idade somos esponjas. Se ouvia o meu pai a dizer que o Soares era isto e aquilo, de vez em quando o Soares era o vilão da história. Tenho algumas em que aparece o Mota Pinto.

As minhas primeiras obras de humor são essas pequenas histórias em que tudo se mistura. Mas sempre com a ideia de que aquilo não ia a lado nenhum. Achava que um dia teria de enfrentar o mundo.

 

O que é que o fez sair, enfrentar o mundo?

A rádio foi o meu grande sair da caixa. As rádios locais, as rádios piratas. No fim dos anos 80 havia uma micro-rádio nas traseiras da casa da minha avó, em Benfica, ao pé do restaurante Califa. Desci a escada, fui lá. Olhei para aquilo e perguntei: “Isto é que é uma rádio?” Comecei a trabalhar nesse mesmo dia. Nem gira-discos tínhamos, só leitor de cassetes. A mesa de mistura parecia uma caixa virada ao contrário na qual alguém tinha cortado ranhuras para meter os cursores. Mas funcionava. Fui a casa buscar o Top Jackpot 86 e estive ali a cruzar Stevie Nicks com Comanchero.

 

Tinha quantos anos?

Tinha 16 ou 17. Fazer rádio foi uma epifania, mesmo numa rádio minúscula, que muitas vezes era milagrosamente ouvida na Amadora.

 

O seu acanhamento era muito físico?

Era. Não foi uma infância deprimente e trágica, mas tinha dificuldades em sociabilizar e acabava só com pessoas iguais a mim. Com alguma pança e óculos. Tive uma fase gorda no secundário. Ia para o núcleo dos gordos de óculos. Aqueles que eram postos à baliza no futebol.

 

E a penca?

A penca sempre fez parte de mim. Mas eu não achava que fosse a pança ou a penca. Era a concha da qual dificilmente sairia. A rádio foi óptima porque me pôs a falar para alguém. A minha mãe ficou espantada porque na rádio florescia.

 

Antes da rádio, tinha atenção? Os pais não estavam sempre à volta da criança, mesmo de uma criança marginalizada porque pertence ao clube dos de pança e óculos.

Hoje, quando se fala em bullying... Nós nem tínhamos uma palavra para isso. Era porrada. Levava uns calduços de vez em quando. Éramos submetidos a uma humilhação por parte dos mais fortes. Nunca pensei que pudesse usar a minha geekness para ganhar a vida com ela, que é o que faço hoje.

 

Havemos de chegar à parte em que trabalha a partir da sua geekness. Ainda na infância: não tinha nenhum interlocutor a não ser o desenho?

Tinha. À noite, punha-me a pensar na vida. “Gostava de ter mais amigos, de ter namorada”. Por outro lado sentia-me confortável com a solidão, a brincar com os meus Legos, a escrever, a desenhar. Era uma dualidade estranha. Havia ainda um outro que queria dar espectáculo. Gostava de fazer rir, apesar de não ser o palhaço da turma. Lembro-me de desenhar as caricaturas dos meus colegas com o intuito de ser mais popular. Comprei amizades assim!, é espectacular [risos]. No ciclo preparatório, um puto instantaneamente embirrou comigo.

 

Esse puto estava habituado a ser o star da turma?

Não sei, era um bully básico. Desenhei o gajo, ofereci-lhe a caricatura. Abraçou-se a mim: “Amigo!”. Nunca mais tive problemas com ele. Caricaturas é uma coisa que odeio fazer. Acho que falho sempre a expectativa das pessoas. Adoro criar bonecos do zero, que não sejam parecidos com ninguém.

 

Consultei alguns fãs incondicionais e trago perguntas feitas por eles. A primeira: “De onde é que vem essa loucura?”

Há-de vir de uma mistura de coisas. Do tempo que tive para explorar este universo interior, da criatividade fervilhante. Primeiro passamos pelo processo doloroso de achar que somos horríveis. De repente percebemos que estes defeitos se calhar não são bem defeitos; são idiossincrasias e originalidades, e que talvez possamos fazer comédia em torno disto. E depois, vem das coisas com que se estava a ser bombardeado. O Tal Canal [Herman], o Dr. Strangelove do Kubrick, A Vida de Brian, dos Monty Phyton, o Flying Circus, que passava na RTP2.

 

E a cerejinha no topo desse cocktail de influências, foi qual?

A rádio. Foi a primeira vez que peguei em toda essa explosão que estava a ocorrer dentro da minha cabeça e a servi ao público. A um público anónimo.

 

Escola primária, foi importante?

Sem dúvida. Tive uma professora espectacular. A Nancy foi importantíssima.

 

Nancy como a boneca?

Sim. A Nancy era uma versão mais barata da Barbie, não era? Alguns pais apontavam-lhe alguns defeitos, o facto de mimar imenso os miúdos. (Fui um bocado mimado e mal preparado para a vida..., não só pela Nancy, também pelas minhas avós. Precisava de ter levado mais porrada. Não estou a dizer física, mas precisava de ter sido mais bem preparado.

 

Está a fazer género. Se tivesse sido mais bem preparado para a vida seria um quadradão.

Se calhar.) Estive com a Nancy da 1ª à 3ª classe. Estimulou a minha criatividade. Foi quase tão importante como as pessoas da minha família. Olho para a Nancy como uma outra mãe na escola. Há pouco tempo, estava numa sessão de autógrafos de um dos meus livros e aparece uma rapariga crescidíssima a dizer que era neta da Nancy. Ligou para a Nancy e estive a falar com ela depois de tantos anos.

 

Como é que foi a conversa?

Reconheci-lhe a voz. Trinta e tal anos depois, era a boa e velha Nancy que conheci. Eu estava sem palavras. Disse-me que tinha muito orgulho e que acompanhava as minhas coisas desde sempre. E que já na altura achava que eu ia fazer qualquer coisa nesta área.

 

Andou numa escola pública? A sua vida era de pura classe média?

Média mais média não havia. Estive um curtíssimo tempo no Colégio Moderno mas depois passei para o [colégio] Pestalozzi. Era da classe média no tempo em que havia classe média. Eram tempos incríveis porque a política entrava pela escola adentro. Hoje entro na escola do meu filho e eles estão-se nas tintas para a política. E sabem lá de que partido são os pais, ou se os pais votam.

 

Nos anos 80, e em especial nos 90, a política desapareceu do mapa das pessoas da nossa geração. As coisas estavam de tal maneira harmonizadas e equilibradas que não era preciso ocuparmo-nos da política. Tem essa impressão?

Tenho. Quando estava a fazer a Caderneta de Cromos na Comercial muita gente dizia que a década de 80 não tinha nenhum interesse. Eu dizia: “Mas foi a nossa década”.

 

A do Capri-Sonne.

Não tivemos o Maio de 68 mas tivemos o Capri-Sonne [risos].

 

Ambos sabemos do Capri-Sonne. Em Benfica ou em Trás-os-Montes, havia um elemento aglutinador chamado televisão.

Tinha uma força descomunal. A televisão era o centro da casa. Hoje é impensável a família estar toda sentada a ver coisas como o Festival da Canção ou os Jogos sem Fronteiras.

 

Ou os vestidos das Doce. E livros? Temos estado a falar de cultura audiovisual, mas se pensar em si como argumentista, a relação com a língua é fundamental.

Adorava português e adorava escrever redacções de tema livre. Sem qualquer tipo de influências porque não lia. A dada altura fiz um texto com o qual a minha professora ficou entusiasmada. Não era baseado em nada senão em maluquices que me ocorriam. “Por acaso já leste o Mário Henrique Leiria?”. Eu não fazia ideia, gostava era de ver os Soldados da Fortuna.

 

Porque é que ela achou que os Contos do Gin Tónico eram bons para si?

Disse: “Lê isto, não sei como, mas pareces influenciado por isto. O teu estilo de nonsense, a maneira de escreveres e de te expores é próxima disto”. Fiquei histericamente fã do Mário Henrique Leiria. Diria que para além das influências audiovisuais, os contos do Mário Henrique Leiria foram uma mega influência. Pensei: “Quero escrever assim, falar sobre isto, falar sobre nêsperas”.

 

Nonsense...

No Flying Circus há um sketch com vikings em que está toda a gente a gritar: “Spam, spam!”. Havia qualquer coisa de irresistível nesse disparate puro.

 

O que é que lhe agrada tanto nesse delírio?

É a sensação de liberdade absoluta. De não se estar escravo de nenhum conceito. É importante que o humor diga coisas importantes sobre a sociedade e que ponha dedos na ferida. Mas se só fizer rir visceralmente, sem que se perceba por que é que aquilo faz rir, a não ser a pureza do efeito cómico, é maravilhoso também.

 

Como um corpo que se escangalha?

Sim. É ir ao nosso lado infantil, o lado dadaísta que todos temos quando somos miúdos. Muitas vezes as pessoas dizem que é dever dos humoristas mudar o mundo. Agradeço que acreditem em nós para fazer a mudança, mas acima de tudo o dever do humorista é fazer rir. É errado vir para esta profissão com um espírito messiânico.

 

O que é que faz rir o seu filho?

Ainda está numa fase em que eu a andar e as minhas calças caírem e ficar em cuecas, é o máximo!

 

Tem cinco anos.

Sim, espero que o humor dele melhore. Primeiro teve a fase em que só era preciso ter um guardanapo à frente e fazer cucú. E isso inspirou um sketch d’ Os Contemporâneos.

 

Trabalha regularmente com o Bruno Nogueira e o Ricardo Araújo Pereira. São também amigos. E são humoristas de tipos de humor diferente.

Adoro-os e adoro trabalhar com eles. Rimo-nos bastante das mesmas coisas, mas a partir de certa altura é a personalidade de cada um que dita o caminho. Com o Ricardo escrevi durante anos para o Herman. Com o Bruno fiz Os Contemporâneos.

 

O Bruno puxa mais pelo seu lado nonsense, o Ricardo puxa pelo seu lado mais analítico, seco. Concorda?

Não consigo especificar. O Ricardo também é um grande fã do disparate puro. Se ouvir a Mixórdia de Temáticas na Comercial, há textos sobre crianças que vistas de trás parecem velhas. Ou tipos a quem nasceu um castanheiro no cu [risos]. E o Bruno, se ouvir o Tubo de Ensaio [na TSF], que ele faz com o [João] Quadros, tem coisas muito críticas.

 

Fizeram coisas juntos que se tornaram objectos de culto...

Há um sketch d’Os Contemporâneos em que tento provar que consigo imitar uma orca. Vinte e tal anos de carreira e o que as pessoas me pedem na rua é para imitar a orca!

 

Por que é que não teve que crescer?

Preservo muito, para o bem e para o mal, o lado infantil, mas tive que crescer. Começa logo no momento em que se lida com impostos [risos]. “Ok, se calhar não posso levar a vida nesta balda”. E quando se é pai olha-se para a vida de outra maneira. Eu estava em pânico.

 

Tinha 37, 38 anos.

Sim. Lembro-me de pedir conselhos a pessoas que achava que tinham a sua dose de loucura e que tinham filhos. Falei com o [radialista] Álvaro Costa, que sempre me pareceu viver num planeta só dele. Disse: “Quando nasce uma criança, sabes o que tens que fazer, sai naturalmente”.

 

Houve coisas que começaram a sair naturalmente?

Houve. Apesar de ser super distraído e cometer calinadas gravíssimas enquanto pai.

 

A sua mulher pediu-me para lembrar que tem de ir buscar a criança. A Ana toma conta de si, assim entre a mãe carinhosa e a preceptora severa?

Isso tem pouquíssimo sex appeal. Eu preciso de alguém que me organize no sentido profissional. Ela tornou-se uma espécie de minha produtora. A minha vida é um puzzle magnífico construído por ela. Mas a vida puxa por nós para sermos adultos. Não se pode passar o tempo a achar que isto tudo é muito divertido.

 

Por que é que não se pode?

Se só se mantém esse lado, a pessoa transforma-se num pateta e é atropelada a atravessar a estrada. Confesso que tenho alguma dificuldade em ter os pés assentes no chão, e tenho uma grande facilidade, que herdei do meu pai, de me meter no meu mundo de coisas confortáveis.

 

A morte do seu pai foi uma primeira maneira de o obrigar a pôr o pé na realidade?

Antes disso. O meu pai morreu em 2010, o Pedro nasceu em 2008. O meu pai viu pouquíssimas vezes o neto. Tive ali uma altura em que olhava para o meu pai – que de modo algum foi um mau pai – e para os defeitos dele. Depois, quando morreu, comecei a fazer um balanço de tudo. “Não tenho o mínimo direito de lhe apontar um dedo pelas coisas supostamente erradas que fez”.

 

Como se davam no fim da vida dele?

Continuava a adorá-lo, mas sentia que estávamos em dois mundos muito separados. Acabei por conseguir uma estranha paz apercebendo-me de que sou parecidíssimo com ele. E pensei: “Se não me ponho a pau, começo a desaparecer e a não dar a atenção que o meu filho e a minha mulher merecem”. Olho-o muito como exemplo para as coisas boas e más.

 

Uma recordação boa com ele.

Tantas. As coisas que me ensinou, os óptimos momentos que passei com ele, as tardes a vermos a Galáctica em casa, os nossos desenhos a meias. As outras coisas: as muralhas que criava em torno de si mesmo, fechado no seu mundo de tabuleiros de xadrez e quadros. Não tenho tabuleiros de xadrez nem quadros.

 

Mas tem o blazer branco do Miami Vice.

Do Don Johnson. Icónico.

 

Perguntei-me se não está a fechar-se atrás da sua muralha, da sua geekness, onde está de blazer branco.

Já fechei mais. A minha mãe dizia: “Tens que contactar um bocadinho com a vida real. Vives num mundo de ficção, só vês filmes e séries”. (Sempre fui muito cinéfilo. Escrevi para a Prémiere durante uns anos. Pus a minha geekness a render das mais variadas maneiras.) Mesmo depois de adulto tive uma tendência tremenda para viver noutro lugar que não este.

 

Voltar ao seu quarto.

No fundo é isso. Depois as coisas começaram a esbater-se. Já não me posso dar ao luxo de ter a geekness que tinha há uns anos. Com um filho, uma vida familiar, o trabalho que surge, é tramado ser geek. Mas é claro que não se consegue tirar a geekness inteira do tipo.

 

Outra pergunta trazida por um fã. A partir de que momento é que sai do quarto e começa a efabular? As pessoas têm noção de que uma parte daquilo é o seu delírio.

Dizem-me: “Não acredito que as coisas que contas da tua vida se tenham passado como dizes”. Eu tento que seja o mais preciso possível. Tento não ser chato a contar, dou algum colorido que vem da minha experiência de ter que servir as coisas com graça e com timings, com punch lines. Mas tento ser o mais próximo possível da realidade.

 

A margem de efabulação é reduzida?

Sim.

 

Está mais na forma do que na substância?

Sim. A Caderneta de Cromos é das coisas mais verdadeiras que fiz na vida. Conseguiu ser brutalmente comercial, as pessoas encheram os Coliseus para nos ver fazer aquilo ao vivo, e compraram os livros, e o Jogo da Glória da Caderneta de Cromos...

 

Pensei que estivesse milionário.

Não, isto é Portugal. Foi muito terapêutico fazer a Caderneta de Cromos. Começou por ser uma maneira de juntar as peças do meu puzzle, e tentar perceber o que é que sou hoje.

 

É uma geração que se reconhece ali, aquela que já cresceu em democracia. É um certo Portugal, também.

Sim. Às tantas comecei a sentir que havia muita gente que, por causa da crise, por causa de tudo o que está mal, olhava para aqueles tempos assim: “Quero voltar para lá e não quero sair”. Não era esse o espírito da Caderneta de Cromos. Não é uma rubrica saudosista, é uma rubrica que acha muito interessante voltarmos lá atrás e percebermos o que nos formou, mas depois é preciso voltarmos aqui, para coisas que não tínhamos naquela altura, nomeadamente os filhos.

 

Sente que fica refém desse que as pessoas querem ver nos Coliseus e na rádio, aquele que os induz, mesmo que não seja essa a intenção, num saudosismo, que os remete para os melhores anos da sua vida?

Senti isso e acabei com a Caderneta de Cromos. Também porque estava esgotado. Agora estou a fazer um remake na M80, os Cromos M80, em que vou buscar os textos originais e lhes dou uma volta. É uma mina que não pára de dar [risos].

 

Estou a ver.

Já estava a raspar nas paredes da memória, já não havia mais nada para extrair da Caderneta de Cromos. Sentia, para o fim, que já estava a partilhar memórias que eram só minhas.

Mas ficar refém é mais profundo que isso.

 

Vamos à conversa profunda.

Tenho sentido recentemente, não sei se é da idade se é de fazer isto há tantos anos, que estou a ficar refém desta espécie de funcionalismo público de humor que é o meu trabalho. Todos os dias tenho que apresentar humor à hora “x”, na rádio, de manhã, às quartas-feiras no 5 Para a Meia-Noite, durante anos seguidos.

 

Continua a sentir gozo no que faz?

Adoro a profissão que tenho, continuo a gostar muito de ir ter com eles de manhã, mas sinto que preciso de fazer outras coisas. E outras coisas que fujam a tudo isto de que estivemos a falar, à geekness, à comédia.

 

Para não ficar um cromo de si mesmo.

Sim. Na minha juventude ficava muito revoltado quando via o Tom Hanks, que tinha feito comédias hilariantes, fazer coisas sérias. Tornou-se um actor respeitável, de Óscares. Salvaguardadas as distâncias, isto da comédia desgasta muito.

 

No seu caso é uma comédia que o tem a si, à sua biografia, no centro.

Tento fugir a isso. O Homem Que Mordeu o Cão é uma rubrica que, apesar de ter muito de meu, fala do mundo e de coisas que se passam fora da minha bolha. Às tantas parecia que estava perdido no tempo, parecia o astronauta na corte do Rei Artur.

 

Fala como se estivesse um pouco exaurido.

Sim. Ter escrito esta longa-metragem, o Por Ela: é óptimo se o filme for feito. Estamos a trabalhar muito para que isso aconteça. Mas para mim, ter um mês de Agosto inteiro, como tive no ano passado, para escrever esta história, que tem tragédia, momentos pesadíssimos, reflexões sobre a vida, é um luxo.

 

A comédia entra?

Entra. Não consigo largar totalmente a comédia. Foi muito terapêutico, quero fazer mais disto.

 

E a rádio, fica onde, no meio disto?

Adoro ouvir o melhor programa de rádio da história, o This American Life, do Ira Glass, que conta histórias verídicas. E sobre os mais variados assuntos. Sinto que é isto que quero fazer um dia. Não quero estar só a contar piadas, a falar sobre a mulher que bateu o recorde de engolir parafusos. Um dos meus heróis é o Woody Allen, e o Inimigo Público não tem nada a ver com o Blue Jasmine. Não é renegar a comédia, mas é qualquer coisa cá dentro que faz pensar que há mais na vida que isto.

 

Vamos usar uma palavra pomposa: gravitas. Está a perceber como é que pode integrá-la no seu discurso, é isso?

É. No 5 Para a Meia-Noite é fácil por vezes fazer uns desvios. Lembro-me de ter tido lá o Jerónimo de Sousa, e de ter feito palhaçadas com ele. Não sendo eu militante do PCP, e nem sequer votando PCP, tenho, por razões familiares, pelo meu pai, uma simpatia pelo PCP.

 

Camarada honorário.

Sim. Deu-me um grande abraço emocionado, uma coisa meio paternal. “O teu pai ficaria orgulhoso”. Tive sempre pouca confiança em mim enquanto apresentador de televisão.

 

Vai para o 5 para a Meia Noite fazer de Markl.

É capaz de ser uma mais-valia, ser um tipo meio desastrado que não sabe como se portar em televisão. Passei a assumir que é isso. Muitas vezes tenho convidados e passam-se conversas que não suscitam a comédia. E depois aparecem pessoas na net a dizer: “Este Markl tem cada vez menos graça”. Por um momento, deixem-me falar com as pessoas normalmente, sem estar armado em engraçadinho.

 

Ena, ena, o Nuno Markl está a envelhecer?

Acho que é isso. Estou a ter uma crise da meia-idade, mas é uma coisa positiva. Na Paraíso Filmes, a série com o Zé Pedro Gomes e o António Feio, há um diálogo que escrevi, dos que gosto mais. Há um argumentista cheio de ideias que diz à personagem do Zé Pedro Gomes, o produtor daquela produtora manhosa da Trafaria: “Gostava que este argumento tivesse mais pathos”. E o Zé Pedro diz: “Eh, pá, ponha patos, ponha galinhas, ponha todos os bichos que quiser”. Isso resume a minha vida, quero ter mais pathos, mas também quero ter galinhas.

 

Falamos de gravitas e terminamos com patos e galinhas?

É esse o meu slogan.

 

 

 Publicado originalmente no Público em 2014