Rita Blanco
Rita Blanco, a propósito de Alice, a filha: «Não estou disposta a que ela fique demasiado lesada por isto. Não posso pô-la numa pessoa qualquer. A única hipótese era ela ficar com uma pessoa suficientemente próxima para que as minhas ausências pudessem ser suportáveis. Eu vou para ao teatro e a minha mãe fica aqui sempre com ela».
Rita Balco, a propósito da mãe: «Ela tem sido um apoio fundamental. Além do pai [da Alice], que também apoia. A minha mãe e o meu padrasto, de quem gosto imenso, têm sido incansáveis e têm sido fundamentais para a minha vida como actriz. Porque a vida de actriz tem uns horários complicados, e teria que desistir um bocadinho...».
A Alice, a mãe, a Alice, o João Canijo, a Alice, a família por perto, «tudo em bom». A qualidade do afecto, o pai que era publicitário e a enchia de mundo, o padrasto que lhe dava Xenofonte a ler como quem dá bolachas ao lanche, a mãe que lhe ensinou que ser de esquerda é não suportar o sofrimento dos outros. A admiração pelos grandes autores, um telefonema a Rohmer a dizer-lhe que queria trabalhar com ele; o realizador a duvidar, a duvidar que ela fosse portuguesa; o francês era exacto, explicava-lhe ela, porque tinha frequentado o Liceu Francês, em Lisboa. As séries e a pulverização na Sic, a fazer de má da fita e a ganhar dinheiro como já não se ganha.
A Alice, a fazer parecer tudo isto um guião antigo.
Confesso: senti-me uma intrusa. Eu cheguei numa manhã de dia de semana, a única em meses que mãe e filha tinham para se mimar, sorrir, dizer coisas, apreciar desenhos, beber o leite todo, pôr o banho a correr. Ainda sugeri voltar noutro dia. Aquele quadro morno, banhado pela luz que vinha do Tejo, comoveu-me. Mas ainda bem que fiquei. Ainda bem que assisti à felicidade das duas e a posso reportar. A Rita, a Rita Blanco, é a mesma Rita, e é outra, depois do nascimento da filha. (Que anda pelos cinco ou seis anos).
Rita Blanco é actriz, e quer que gostem dela pelo trabalho dela. Para o resto estão lá os amigos e a família e a Alice.
Podemos assumir que a tua filha está a assistir a esta entrevista?
Podemos.
Há coisas de que falas à frente dela e outras de que não falas à frente dela?
Perante a Alice não me escondo, nem me esquivo. Nunca. Há coisas que são importantes ela saber e outras que não, em conformidade com a idade dela e com aquilo que é importante para ela. A única coisa que é minha e que não partilho com mais ninguém é a minha vida íntima.
O que é que delimita o território da intimidade? São os afectos, a sexualidade?
É a sexualidade, e os afectos até um certo ponto. A Alice pode saber quais são os meus afectos, se eu assim o decidir, mas não tem que participar. Não quero ser amiga dela, quero ser mãe dela. Às vezes, tenho muita pena de vivermos só as duas. Tira-lhe a possibilidade de ter de me partilhar com outras pessoas. A única maneira de contrabalançar isso é tirar-lhe um bocadinho de um espaço que pertence só a mim – para ela perceber que há zonas onde não pode entrar. Isso ajudá-la-á, mais tarde, a ter o seu espaço não invasível.
A Alice representa uma mudança radical na tua vida. Quando se conhece um bocadinho a tua história, percebe-se a existência do espelho, de uma existência frente ao espelho; percebe-se a força da relação com a tua mãe...
Continua a ser. Estou a ver que não evoluí nada! Saio daqui e vou para o psiquiatra! Felizmente, há aqui um no andar de baixo, vou já! Ficas-me com a miúda, não ficas?
Fico. Há a relação com o teu irmão... E a leitura. Estas eram as coisas estrurantes para ti.
O meu pai também é muito importante nesta história.
O que é que mudou?
Não mudou nada. Apareceu cá mais este «bicho», que perturba isto tudo. Não sei como é que são as outras mães, mas há uma altura em que ficas baralhado... Pensavas, até ter um filho, que sabias o que era amar, e depois... «Cuidado, afinal amar é isto». Começas a questionar tudo. Podes ficar um bocadinho agarrada àquilo e pensar que não precisas de mais nada na vida. Isso é péssimo para eles, é violentíssimo para eles. Claro que depois reequilibras a coisa. Depois uma pessoa cura-se.
Tu foste o centro da vida dos teus pais. Dizes que é péssimo em que sentido?
Fui o centro da vida dos meus pais, mas tive a sorte de ter irmãos. A Alice também tem irmãos, só que não vivem com ela, e portanto ela é o centro das atenções desta casa. Eu fui uma mimada do pior, apesar de ter um irmão. Tenho várias tias, que não têm filhos, que são quase segundas mães. Aquilo estava tudo centrado em mim. O meu irmão só nasceu quando eu tinha seis anos. Estou sempre cheia medo que ela também fique mimada demais.
Mas qual é a crise de se ser mimado demais?
O ser mimado demais impede-nos de evoluir mais rapidamente.
Amaste o teu irmão desde o princípio?
Acho que sim. Adorava o meu irmão.
Nunca tiveste ciumite?
Não. Pelo contrário. Quando gosto muito, muito, muito deixo de ter ciúmes. Só me aconteceu com o meu irmão e com a minha filha. Gosto tanto deles que quero imenso que sejam amados por toda a gente. Então, não há hipótese de rivalidade. Isso é que é o amor supremo: não teres nenhum sentimento de posse para com o outro, nem de rivalidade. O ciúme não é um sentimento, não tem direito a ser um sentimento, é pouco interessante.
Está bem que não é nobre. Mas que é muito estruturante, lá isso é.
O ciúme é muito destruidor.
No fundo, é a incerteza.
Mas não tenho incerteza nenhuma em relação ao meu amor por ela e ao amor dela por mim! Nem em relação ao meu irmão. Os meus amores com homens é outra coisa. Aí, faz parte o ciúme, aí sim senhora, sou do piorio. Com ela é demasiado importante, é demasiado grave para se falhar. Com os filhos, temos só obrigações e deveres.
Ao mesmo tempo, é o mais redentor dos amores. Sendo a máxima obrigação, é também a mais libertadora.
Há a culpa. A história repete-se um bocadinho. Tinha imensos sentimentos de culpa perante o meu irmão, achava que nunca era suficientemente boa irmã. E também tenho a certeza de que não sou suficientemente boa mãe. Passo a vida a tentar ser menos má mãe e a culpabilizar-me por isso.
Lembro-me de nos encontrarmos num jantar com o Pedro Almodovar, que estava a promover o «Tudo sobre a minha mãe». Era a primeira vez que saías depois de a Alice nascer, e sofrias imenso por estares longe dela. Era uma coisa comoventíssima.
Lembro-me desse jantar, odiei estar no jantar.
O teu sentimento era: «Estou a traí-la». A miúda já devia ter meio ano, pelo menos.
Devia ter mais, porque já não lhe dava de mamar, e dei de mamar até aos nove meses. Ela «bebia» de três horas e meia em três horas e meia. Estava a trabalhar, ela ia comigo para o estúdio. Estávamos sempre juntas. É o que está certo! Para que é que se tem filhos? Não estou a criticar os outros, mas para mim é o que está certo.
Nesse jantar não pensaste naquela primeiro encontro com o Antonio Banderas, em que ele te disse: «És mesmo uma actriz para o Pedro [Almodovar], tenho que te apresentar ao Pedro».
Estávamos fora do contexto, os dois. Estávamos na Suíça, em Genève.
Com o Almodovar à tua frente, não recuperaste essa velha conversa com o Banderas?
Não. De todo.
É como se fosse uma outra vida?
É.
Então conta lá a conversa com o Banderas. Coincidiram num meeting internacional, eram considerados as grandes esperanças do cinema europeu.
Nós chegamos ali, a Genève, um frio do caraças, eu e ele muito mediterrânicos, os outros todos nórdicos, as actrizes todas loiras. O único com quem tinha alguma coisa a ver era com o Antonio Banderas, que não conhecia de lado nenhum. Ele estava com a mulher, que não era a Melanie Griffith, mas a Anna. Era um homem giro, simpático, inteligente, parecíamos achar as mesmas coisas sobre o que era ser actor. Não percebíamos nada daquilo, não é? Ainda hoje não percebo. Fizemos logo uma ligação, prontos para a converseta. Ele espanhol, eu portuguesa com raízes espanholas, e falávamos os dois a mesma língua.
Li que és fluente em italiano, espanhol...
Não sou nada fluente em espanhol.
Em francês sim, por causa da escola.
Sim. E o italiano também, por causa do Instituto Italiano. Mas não falo fluentemente nada. Falo razoavelmente francês.
O teu pai falava português?
Português. A minha avó é que era galega. A verdade é que a malta deu-se muito bem, já só queríamos estar juntos, e com a mulher dele. Não havia nada de outras coisas... Fui-me soltando e ele dizia: «Tu és mesmo... pareces uma actriz do Almodovar». Ele disse isto como podia ter dito: gosto imenso de tomar chá contigo. E eu: «Muito obrigada, muito obrigada». E pronto, morre aí o assunto.
Tu eras uma rapariga ambiciosa. Não agarraste a ideia de ter uma carreira internacional e ser actriz do Almodovar?
A certa altura pensei que era bom ter uma carreira internacional; mas a minha ambição, como sou muito mimada, limitou-me sempre muito.
Como assim?
Eu achava que sim, mas que tinham que me vir buscar. Tenho acesso a muitos realizadores, facilmente, através do Paulo Branco, do Pedro Borges, e nunca quis. Há muitos actores que são assim: só querem que trabalhem com eles se forem desejados. A ideia de ir ter com alguém, fazer-me ao piso, dá-me vómitos, morro de vergonha! Era incapaz.
Estar a afinfar-se é uma coisa, outra coisa é o exercício de humildade que permite dizer: «Gostava muito de trabalhar consigo».
Já me aconteceu uma vez, com um realizador...
Telefonaste ao Eric Rohmer.
Ele, coitado, nem acreditou.
Mas como é que conseguiste o número de telefone do Rohmer?
Em Paris conheço muita gente.
Como é que ganhaste coragem para pegar no telefone?
Não foi preciso coragem: cheguei e telefonei. Fui para Paris... Fui parva, devia era ter ficado em Portugal.
Foste para Paris para telefonar ao Rohmer?
Fui. Nunca me passou pela cabeça que ele achasse que eu vivia lá e que não acreditasse que era portuguesa de gema e que tinha ido lá de propósito para falar com ele. Mas era nova, e não pensava. Mais tarde comecei a perceber que uma carreira internacional pode fazer sentido ou não. Poderás tu dizer-me: «Dizes que não faz sentido porque não a tiveste». Mas eu tive oportunidades!, fiz alguns trabalhos com realizadores não portugueses. Devo dizer-te que o que gosto mesmo é de representar em português. Faz-me imensa impressão falar noutra língua.
Porquê?
Não é pela dificuldade imediata da língua; é porque falar noutra língua já é uma representação, e limita as subtilezas. O Banderas é um excepcional actor em espanhol e não é um excepcional actor em inglês.
Tem que ver com a ressonância, com a música daquela língua no teu mapa afectivo?
É, tem a ver com as subtilezas que se conseguem enfiar nas palavras, nos sons, em letras. Numa língua em que não se tem passado, as coisas já não são as mesmas, perde-se um percurso. Como é que hei-de explicar isto? Eu sou portuguesa, posso falar sobre ser portuguesa, sobre as coisas que são relativas à minha cultura, ao meu estar aqui. Falar em português, fazer coisas com realizadores portugueses que falam da mesma coisa que eu, podia ser limitativo. Mas, quanto mais se limita uma coisa, às vezes, mais se torna [a coisa] universal. Isto é um percurso, gosto deste percurso e quero este percurso. Tenho um privilégio muito grande em trabalhar com o João Canijo. Tive a sorte de me acontecer aquilo que acontece poucas vezes: uma actriz e um realizador, que até tiveram uma vida passada em comum, não importa...
Não?
Tem importância porque o nosso percurso foi feito em conjunto. Eu estava envolvida nos guiões dele, ele estava envolvido na minha representação e nós conseguimos fazer uma história que só tem fim quando acabarmos. Com as devidas distâncias, não estou a comparar-me, nem a mim nem ao João, comparo é a sorte e o privilégio: a Gena Rowlands e o [John] Cassavetes, a Liv Ullmann e o [Ingmar] Bergman. Eu já não tenho que perguntar coisas ao João e ele já não tem que me dizer nada, basta olharmos um para o outro e sabemos o que é que cada um quer do outro.
Se não houvesse em todos estes casos uma relação pessoal a misturar-se com a relação profissional, será que a evolução seria a mesma?
Não. Não estou a dizer que era melhor ou pior, era outra. O que é importante é o percurso de trabalho, é disso que estamos a falar.
O que estou justamente a perguntar é se o percurso de trabalho seria o mesmo se não houvesse uma relação emocional tão fundante.
Não sei. Não tenho outra experiência, só tenho esta. Hoje em dia é uma relação só de trabalho, de amizade, de amor – do nosso amor passado. O amor nunca acaba entre as pessoas.
É a capacidade de amar que não acaba?
Isso é outra coisa. Mas o amor já ficou lá marcado, vai-nos guiar no resto da vida. É impossível acabar os amores, não é? Pode acabar a possibilidade de as pessoas estarem juntas. Não ando aqui com imensa vontade de voltar atrás, pelo contrário... Agora amo muito, estou tão feliz que até ferve!
Gostava de voltar atrás. Não tens a facilidade, não queres, o que seja, falar com realizadores e dizer: «Quero trabalhar consigo». Foi por não ter corrido bem com o Rohmer que a seguir te fechaste?
Não. Aquilo foi uma necessidade vital. Eu via os filmes e achava mesmo que precisava de fazer um filme com ele. Só importa trabalhar com uma pessoa se a compreendermos e acharmos que podemos ser compreendidos por ela. Adorava que o Coppola me telefonasse, morria! Já não podia ir trabalhar porque tinha falecido! Mas será que tinha alguma a ver com o Coppola? Será que nos íamos entender? Não faz sentido nenhum. Com o Rohmer percebi que havia muitas...
Como se processava a identificação?
O que ele pedia aos actores, para mim, era muito compreensível. Eu achava..., na minha estupidez, que eventualmente tinha alguma coisa que lhe podia dar! Já fiz vários filmes com realizadores que são uma chatice. É uma chatice porque não tens afinidade, e o gozo de fazer cinema é perceber o que ele quer e fazer exactamente aquilo. Filmar por filmar não tem graça. Decidi sempre pelo trabalho com o João Canijo. E decidi bem.
O modo como seduzes, e tu és muito sedutora, não é nada convencional. Seduzes uma plateia porque tens graça, és inteligente, crias um efeito surpresa.
Achas isso tudo ou leste nalgum sítio?
Acho isto tudo! Acho que provocas, e fazes uma triagem, como quem: «É mais fácil não gostar de mim... Aqueles que, mesmo assim, gostam, é porque valem mesmo a pena».
Os meus amigos todos dizem isso, mas não é verdade. Se calhar sou um bocado agressiva. Eu acho que não sou.
Porque é que usas esse tom de enfant terrible, porque é que dizes tudo o que te passa na cabeça?
Achas que sou?
Depois da maternidade, estás mais suave. Mas todo o teu percurso é nesse sentido.
É armação. Provavelmente é uma defesa. Sou muito tímida, como a maior parte das pessoas. Sou igual às outras pessoas. A exposição é difícil de assumir e de aguentar. Tenho medo da exposição. É assustador, desagradável, invasor.
O que é que é assustador? É pensar que a outra pessoa pode não gostar de ti?
Eu trabalho. Estamos expostos constantemente, não é só quando está o público. É-se exposto perante os colegas, o encenador, quando se ensaia, tem que se mostrar o que se vale. Acredito que um actor tem que ser generoso, está sempre ali a entregar pontos, a expor os sentimentos, a mostrar muita coisa que na vida normal parece grotesca, exagerada e ridícula. Não é fácil.
É estar em carne viva.
É, constantemente. Aquilo já é duro. Depois, faz-se um trabalho para o público, é evidente que isso nos expõe perante o público.
Mas a tua forma de defesa é quase agressiva! Nos múltiplos projectos em que participaste, sobretudo na Sic, fazias o papel da má da fita.
Não era uma defesa suficientemente estudada, porque senão não tinha o efeito negativo que muitas vezes teve, e tem. Mas tenho algum prazer nisso, ganhei prazer nisso. Já que me era duro e não conseguia reagir de outra forma, aprendi a retirar prazer disso. Quero lá saber que não gostem de mim! Eu gosto de mim e tenho imensos amigos que gostam de mim. Quem quer gosta, que não quer... Não se pode andar a agradar a toda a gente.
Mas isso é mesmo assim ou convenceste-te de que era assim? Até onde é que te importa que as pessoas gostem de ti?
Claro que quero que as pessoas, o público, gostem de mim, do meu trabalho. O gostarem de mim pessoalmente... O que quero mesmo é que as pessoas gostem do trabalho que faço. Não quero muita gente à minha volta, tenho os meus amigos, de quem gosto muito. Tenho muita sorte, a vida corre bem, correu-me sempre bem. Gosto muito de gostar das pessoas, mas não se pode gostar todos os dias, a toda a hora, de toda a gente. Também tem a ver com a minha profissão: preciso das pessoas, de analisar, de olhar, para depois poder deitar pessoas cá para fora. Pessoas é bom.
Essa desimportância que se dá aos outros...
Ao mesmo tempo, dou muita importância! Mas não no particular, não posso entregar-me a toda a gente, senão morro. Eu sou assim, tenho mau feitio à partida.
Não percebo onde é que isso radica. Foste muito mimada, tiveste uma mãe muito próxima, um pai irreverente...
Muito pai, também. Tive a minha família toda muito à volta, o meu avô, a minha avó, tudo em bom.
E depois dás em rapariga que fala sozinha para o espelho, que é provocadora e que tem mau feitio... Consegues perceber?
Há pessoas que gostam de mim. Eu sei que é muito mau estar a dizer isto, mas sinto na rua que há pessoas que gostam de mim.
Há uma franja de público que acha graça ao lado histriónico, independentemente do teu trabalho como actriz. Se calhar nem foram ver o «Ganhar a vida» (João Canijo).
Já fiz muita coisa séria sem ser o «Ganhar a vida»! Peças de teatro, muito. Teatro, dramático, bom. Não estou a dizer que era boa, mas bom teatro.
Pronto, pronto. Fixo-me no «Ganhar a vida» porque é intensamente dramático, feito à tua medida, onde estás no teu melhor.
Estou melhor neste [«Noite escura»]. Muito mais difícil, o papel, mais subtil. Este papel não é para brilhar, o outro era para brilhar. O próximo é para brilhar outra vez.
Tiveste ciúmes da Beatriz Batarda, que brilha no «Noite escura»?
Tive. Mas bons, ciúmes bons.
Significa que não dás pancada?
Não, não. Eu preciso dos outros para trabalhar e gostei de trabalhar com ela. Era importantíssimo que ela fosse boa, para eu poder ser boa e para o filme funcionar. Quando trabalho com o João Canijo, o que quero mais é que os outros sejam muito bons, para servirem bem o João. Mas penso: «Ela brilha mais do que eu»... Só posso confessar porque são [ciúmes] bons. Não deixo de gostar dela por causa disso, pelo contrário. E admiro o trabalho dela. Só consigo gostar mesmo das pessoas quando as admiro.
Admirar é uma coisa, amar é outra.
Para mim, começa pela admiração. Só consigo gostar de pessoas que admiro.
Mas, por exemplo, o teu pai: tinhas admiração por ele?
Tinha imensa admiração pelo meu pai.
Tinha lido numa entrevista que o lado bizarro dele...
Incomodava-me, era adolescente, o que é que achas? Mas não deixava de o admirar. O meu pai era um homem especial. E era muito inteligente, coisa que também aprecio.
O que é que aprendeste com ele?
Generosidade, que é fundamental. Mais ainda que a inteligência. Pelo menos deu-me isso. Se aprendi ou não, veremos no fim.
Ponto de situação: tínhamos uma rapariga cheia de grandes planos que foi percebendo que há coisas mais importantes do que o sucesso. É assim?
Sabes que no nosso tempo, (ainda no outro dia falava disso com o Miguel Guilherme), o sucesso não existia. Para já, as pessoas não faziam televisão, não ficavam famosas em meia-hora, ficavam conhecidas em 15 anos. O sucesso não era uma coisa que nos batesse à porta, não era parte integrante da vida de um actor. O que era mesmo importante era fazer bons trabalhos. Éramos até um bocadinho arrogantes...
Mea culpa?
Eu era muito arrogante. Fui chamada arrogante muitas vezes e com alguma razão. Trabalhava só com os melhores, os melhores textos. Eventualmente perdi a oportunidade de conhecer algumas pessoas que, na minha arrogância, achava que não eram boas, e que, se calhar, eram muito boas. Mas, por outro lado, também me fez ser muito exigente, particularmente comigo. Foi a minha maneira de estar e não vou agora desfazê-la toda.
Os produtos menos bons que foste fazendo, sobretudo para televisão, foram os sapos que tiveste que engolir – se pensarmos nessa arrogância inicial?
Não engoli muitos, se queres que te diga. Tive o privilégio de ter uma relação muito próxima com o [Emídio] Rangel e de discutir com ele o que é que ia fazer. Eu não era da casa, fazia o que queria. Porque era actriz, tinha os filmes e as peças cá fora. Também fiz algumas coisas que me divertiram imenso. Nomeadamente a «Má Língua», em que levei pancada de manhã, de tarde e de noite, inclusive na rua, e fez-me bem.
Mas para uma rapariga que telefona ao Rohmer, sonha com o Antonioni, trabalha intensamente com o Canijo...
E com outros realizadores. Por exemplo, gosto imenso de trabalhar com o João Botelho. Tenho afinidades com o João Botelho, percebo o que ele me diz, e tento chegar o mais próximo disso. Esse é que é o trabalho do actor: chegar mais próximo de uma coisa que nos é pedida e ainda conseguirmos dar-lhe um toquezinho que é só nosso. Isso é que é o gozo de ser actor.
Estava a perguntar se fizeste televisão para ganhar dinheiro.
Fiz. Imenso.
Tiveste uma vida burguesa, se posso dizer. E depois expuseste-te a uma carreira incerta, passaste por dificuldades...
Não posso dizer isso. Vivi com menos dinheiro, com mais dinheiro, mas viver com dificuldades é outra coisa. Houve uma altura em que, para não aceitar trabalhos que não queria, fui trabalhar para um restaurante. Mas isso é uma opção.
Isso foi quando?
Houve alturas em que a gente não tinha mesmo dinheiro.
Estás a falar da fase em que vivias com o João?
Sim. Sei que tenho sempre a minha família e o João tinha a família dele. Nós achávamos que não devíamos ter essa protecção. Fui viver com o João quando comecei o Conservatório, não fazia sentido nenhum estar a dizer à minha mãe: «Agora estou fora de casa, mas pague-me lá o curso e pague-me tudo». Trabalhava à noite no Teatro Nacional como figurante e durante o dia ia para o Conservatório. Mas isso faz parte da vida.
No restaurante fizeste o quê?
Era empregada de mesa, no Casa Nostra. Mas também não foi muito tempo.
Divertias as pessoas, de papelinho na mão, a anotar os pedidos?
Não sei se as fazia rir, mas até me diverti. Divertia-me imenso com o Fernando, que era o gerente do restaurante. Também fui porque conhecia a Paola [a dona] do cinema e ela disse-me: «Queres ir trabalhar para o meu restaurante?». Não fui pedir emprego a um restaurante. Por acaso, sempre tive trabalho e há relativamente pouco tempo tive seis meses sem trabalho. De repente tens uma filha e não podes brincar como brincavas antes. Não posso dizer: agora não trabalho, vou para um restaurante, vou fazer um curso. Passei a ter uma razoabilidade que nunca tive que ter.
E as cenas que representavas ao espelho quando eras pequena, em que te vestias e despias? A maior parte das pessoas não percebe como és vaidosa e como gostas de coisas bonitas.
Pois não, não percebem. O que é estranhíssimo. Dizem-me sempre: «Ai, tu não te vestes, andas sempre muito maltrapilha», e tenho sempre umas roupas muito boas.
Vejo-te muitas vezes com sapatos e camisolas Miu Miu...
Eu tanto gosto de comprar uns sapatos como me estou nas tintas para os sapatos, e isso é que é bom. Relativizar é fundamental. Gosto de mudar de roupa quando represento, ainda por cima são outras pessoas que tratam. Quando vou trabalhar, se pudesse punha sempre a mesma roupa para não ter que pensar. Não consigo escolher roupa todos os dias, estar bem todos os dias, é uma canseira. Gosto de usar roupas que têm um ar velho, óptimas, às vezes caríssimas. Sai mais caro comprar uma camisola com um ar velho do que uma nova. Um ar velho e um ar pingão, isso é lindo. Tenho a mania dos anéis. Uso sempre um anel aqui e mais o brinco.
Esse anel é porquê?
Foi o meu pai que me deu. É um buda, está de pernas para baixo para correr bem a vida.
E o brinco?
Era da minha avó, só uso um, só tenho um furo.
E isso é superstição?
Não. Quando era mais nova, a minha família, toda muito progressista, claro que não me furaram as orelhas! Na adolescência quis furar as orelhas, as minhas amigas tinham as orelhas todas furadas. Eu furei e doeu-me horrores, infectou-me logo e disse: «Mãe, tire-me, tire-me!, que isto está a doer muito». Tirou-me, fechou, fiquei só com um, só uso um brinco. Se assim foi é porque era para ser assim.
Ainda não explicaste porque é que representavas ao espelho, cenas de filmes em que eras trocada, em inglês...
Não era bem trocada... O que é que se via nos filmes? O conflito. Dizer-me que já não gosta de mim. É mais giro fazer a sofredora, e eu estava nessa fase. Quando estava a fazer a cama, para me entreter, dizia: «I don’t care. Ok.Ok.». Era ela a mostrar que se estava a cagar para ser deixada.
O que nunca é propriamente verdade...
Exactamente. Mas a possibilidade de viveres outras vidas é porreirinha. Olha que eu, à força de muita personagem e muito livro que li, tenho a impressão que, se for abandonada, aguento-me. Toda a gente se aguenta.
Também dizias que a vida da Bovary e outras que lias nos livros eram mais interessantes que a tua.
Era porque ainda não tinha vivido uma data de coisas. A minha é muito melhor.
A Bovary não tinha uma vida nada interessante. Pelo contrário: morria de tédio. Por isso é que se pôs a ter amantes.
O prazer de vivermos outras vidas através dos livros chama-se o prazer da leitura. Claro que gosto da minha vida.
Porque é que, de modo geral, as pessoas são mais infelizes do que felizes?
A vida é mesmo assim, temos que passar pelas fases todas. Houve uma altura em que me aconteceu achar que estava a viver a vida a despachar, não me estavam a acontecer coisas. Eu sabia lá que ia ter momentos de tanta felicidade. Claro que há muitas chatices, o mundo não está fácil.
És mais feliz que infeliz?
Na minha vida sem o mundo, sim. Tenho muitos momentos de felicidade. E outros momentos de muita infelicidade – também faz parte de ser feliz. Eu preciso desse contraste, para saber quando é que sou feliz, senão é uma grande maçada. Mas o mundo não é feliz. E isso começa a ser pesado para a nossa felicidade pessoal.
Sentes-te mais presa à vida por causa da Alice?
Sempre me senti muito presa à vida.
Mas um filho é um comprometimento último, de que uma pessoa não pode abdicar.
Tive uma educação entre o conservador e o muito liberal, uma educação de uma família (uma mãe, um pai e um padrasto, o Nuno) de esquerda. Nunca fui alheada do mundo, nunca. Estou a lembrar-me de uma frase do Zé Mário Branco de que gosto – pode ser primária, pode ser o que quiseres: «Ser de esquerda é não suportar o sofrimento dos outros». Fui educada assim.
Pronto...
Não tens aí nada para escrever, não disse nada com interesse.
Tens essa impressão?
A única coisa com interesse que posso dizer é que gosto muito da Alice. E amo muito, tenho a sorte de amar. Não só a Alice. Amo os meus amigos e amo o meu namorado.
Quanto lês uma entrevista, o que é que te interessa? A intensidade da pessoa, a verdade que está ali inscrita? Imagina que estás a ler esta entrevista...
Vou morrer de terror, só digo parvoíces. Leio e digo que sou patética, e todos os meus amigos me telefonam a dizer: «Rita, mais uma vez foste ridícula. Por que é que dizes tantas parvoíces? Por que é que és tão incoerente? Por que é que és tão desinteressante?».
Mas achas isso tudo?
Na vida real não acho, nas entrevistas é que só digo parvoíces. Tudo o que te digo hoje, amanhã acho outra coisa. «Porque é que estão a falar de mim?». Se há alguma coisa que pode ter interesse para as pessoas é o meu trabalho – é a frase do costume dos actores, mas é verdade. O que é que as pessoas querem saber de nós? Zero. Imagina o que é veres no jornal escarrapachado as parvoíces que dizes com os amigos, que não interessam a ninguém e retiradas do contexto pequenino... Estás a perceber? É sempre mau.
Lês uma entrevista de uma pessoa qualquer e o que é que te pode prender?
As pessoas serem interessantes. Ouvir a Paula Rego comove-me logo. De vez em quando gosto de ouvir umas pessoas a falarem. Mas elas estão a falar sobre o seu trabalho, não é sobre si próprias. Eu tenho vergonha de mim a falar sobre mim própria. Não tenho nada de interessante para dizer às pessoas. Também se eu disser isto, cai arrogante. Tudo o que possa dizer vira-se contra mim!
Há, por fim, alguma coisa mais que queiras dizer?
Gosto muito do meu namorado!
Publicado originalmente no DNa, do Diário de Notícias, em 2005